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O ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev (centro), acena, enquanto caminha com o bibliotecário do Congresso James H. Billington (à direita) no Capitólio dos EUA
O ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev (centro), acena, enquanto caminha com o bibliotecário do Congresso James H. Billington (à direita) no Capitólio dos EUA| Foto: Biblioteca do Congresso Americano

“O futuro da humanidade não será definido pela oposição entre capitalismo e socialismo. Foi essa dicotomia que criou a divisão da comunidade mundial e toda a série de conseqüências catastróficas. Devemos encontrar um paradigma que integre todas as realizações do espírito e das ações humanas, sem nos ater à ideologia ou ao movimento político no qual se originam. Esse paradigma só pode se apoiar em valores comuns que a humanidade desenvolveu ao longo dos séculos. A busca por um novo paradigma deveria ser a busca por uma síntese daquilo que é comum e une os povos, os países e as nações, e não daquilo que os divide” (Mikhail Gorbachev, Em Busca de um Novo Começo: desenvolvendo uma nova civilização, 1995).

Nos meios conservadores do Ocidente, circula ainda hoje uma bela história da carochinha, segundo a qual, no fim dos anos 1980, o comunismo foi derrotado por conta da inquestionável superioridade moral e intelectual das democracias liberais. Nas versões mais conhecidas desse acalanto para adultos, o ex-presidente americano Ronald Reagan e o Papa João Paulo II (figuras indubitavelmente admiráveis por seu vigor no combate ao totalitarismo soviético) teriam sido os dois grandes coveiros do regime político vigente na Cortina de Ferro.

Os que se deixam embalar por essa lenda costumam partir, curiosamente, de uma premissa meta-histórica progressista (senão mesmo materialista): a de que a história humana é a de um progresso contínuo e inexorável, de que as divergências político-ideológicas são fruto de atraso civilizacional e, portanto, passíveis de superação mediante o avanço universal da razão.

Vendo-se como representantes do pináculo do progresso humano, ou porta-vozes do “fim da história”, liberais e conservadores adeptos dessa mitologia autolisonjeira enxergam os adversários políticos sob o simbolismo do atraso, confundindo alteridade (cultural, ideológica e política) com anterioridade (histórica). Concebendo o inimigo como atrasado (e, portanto, como uma versão anterior de si próprio), o liberal-conservador “progressista” torna-se incapaz de percebê-lo como diferente – e, pois, de compreendê-lo. E se, conforme a conhecida lição de Sun Tzu, não se vence um inimigo sem conhecê-lo, é preciso admitir que a cosmovisão triunfalista de liberais e conservadores é o seu grande calcanhar de Aquiles.

Pois aquilo que, embevecidos em triunfalismo histórico, liberais e conservadores ocidentais viram como uma vitória definitiva contra o Comunismo – que, assim como uma fruta podre, teria simplesmente “caído” da árvore – não passou de mais uma (talvez a mais bem-sucedida) das tantas reformas internas do regime, mediante as quais ele buscou se adaptar para se perpetuar.

A auto-ilusão liberal-conservadora chega a soar cômica, quando lembramos, por exemplo, do que Mikhail Gorbachev escreveu logo no primeiro capítulo do livro Perestroika (1987), que trata das “origens”, da “essência” e – sublinhe-se! – do “caráter revolucionário” do processo homônimo: “Existem pessoas, no Ocidente, que gostariam de nos fazer crer que o socialismo atravessa uma crise profunda por haver conduzido nossa sociedade a um impasse. É dessa forma que eles interpretam nossa análise crítica da situação do final dos anos 70 e começo dos anos 80. Nós só temos um objetivo, dizem eles: adotar os métodos de gestão econômica capitalistas e seus modelos sociais; em outras palavras, nos dirigir ao capitalismo...  Para pôr um fim a esses rumores e especulações que se multiplicam no Ocidente, gostaria uma vez mais de ressaltar que nós conduzimos todas as nossas reformas em conformidade com a via socialista. É no contexto do socialismo, e não fora dele, que buscamos as respostas a todas as questões que se colocam. É em função desses critérios que avaliamos tanto nossos êxitos quanto nossos erros. Aqueles que esperam que nos afastemos da via socialista se decepcionarão profundamente. Cada elemento do programa da perestroika – e o programa em seu conjunto – se funda inteiramente na ideia de que é necessário mais socialismo, mais democracia...  Estamos nos dirigindo a mais socialismo, e não o contrário. Nós o declaramos honestamente, sem tentar enganar nem nosso povo e nem o resto do mundo. Toda esperança que possamos ter de construir uma sociedade diferente, não-socialista, e passar ao outro campo é irrealista e insignificante. Aqueles, no Ocidente, que esperam que abandonemos a via socialista se desapontarão”.

Gorbachev não podia ter dito de maneira mais clara, mas o Ocidente capitalista preferiu não acreditar, chegando mesmo a retratar o líder soviético como um reformador solitário e apartado do velho Politburo, um tipo humanista e independente, dotado de uma nova mentalidade capaz de promover a democracia liberal na antiga Cortina de Ferro. Mas, mesmo na hipótese de que o homem fosse um autêntico reformador com pendores democráticos (e não uma velha raposa leninista, como de fato era), continuaria sendo risível a crença de que, sozinho, ele tivesse meios de forçar o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) a abdicar de seu poder e aceitar passivamente o próprio colapso, quando nada o obrigava a fazê-lo.

Foi também Gorbachev que, em 1988, ao se defender de críticas à perestroika, e segundo as quais o plano da fora mal concebido, admitiu igualmente: “Como assim mal concebido? O plano havia sido muito bem estudado, e isso muito antes de 1985: 110 estudos e projetos foram então apresentados ao Comitê Central por diversas grandes cabeças. Tudo remonta a uma época bem anterior à Plenária de Abril (1985)”.

Como demonstra Pascal Bernardin em O Império Ecológico: a subversão da ecologia pelo globalismo, as primeiras elaborações da assim chamada “nova mentalidade” soviética, pretensamente voltada à abertura e à liberalização, datam ao menos do fim dos anos 1970. Muito antes de Gorbachev, que apenas herdou o programa reformista, haviam sido concebidas por importantes intelectuais orgânicos do regime, cuja missão era dar um norte filosófico para a URSS pós-Stalin. O projeto – que consistia, basicamente, num renouveau intelectual do leninismo – abrangia diversas instituições acadêmicas (como, por exemplo, a Escola Internacional Lenin, reaberta em 1964), e era discutido em publicações intelectualmente sofisticadas tais como os jornais Voprosy Filosofii (“Questões de Filosofia”) e Voprosy Ekonomiki (“Questões de Economia”). No topo dessa estrutura estrava o Departamento Internacional do Comitê Central (CC) do PCUS, sob comando de Iuri Andropov, que à época também chefiava a KGB.

Um testemunho precioso dessa história, ainda hoje amplamente ignorada no Ocidente, é o de Evgeny Novikov, prestigiado intelectual orgânico do regime, e outrora integrante daquele mesmo departamento. Em Gorbatchev and the Collapse of the Soviet Communist Party (1994), livro co-autorado pelo padre católico Patrick Bascio, escreve o ex-membro do Politburo: “O colapso do Partido Comunista soviético não foi um acidente da história nem o súbito resplandecer da democracia. Foi o resultado de um plano minuciosamente preparado, concebido pela elite do Partido e executado pela direção de um departamento secreto do Comitê Central, o Departamento Internacional”.

Mais valioso ainda, todavia, é o testemunho de Anatoliy Golitsyn, ex-oficial da KGB, descrito por James Angleton, então chefe de contra-inteligência da CIA, como “o mais valioso desertor a pisar no Ocidente”. Em seu primeiro livro, New Lies for Old (1984), Golitsyn chamava a atenção para o quão pouco compreendidas no Ocidente eram as mudanças ocorridas no mundo comunista, e alertava para o fato de que, frequentemente, os “sovietólogos” e as autoridades ocidentais, por incapazes de apreender a natureza dialética do pensamento estratégico comunista, eram presas fáceis das campanhas de desinformação conduzidas pelo serviço secreto soviético. Nessa obra, foram corretamente previstos, como parte das novas estratégias comunistas de perpetuação no poder, eventos como a liberalização do Leste Europeu, a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha (entendida como pré-requisito para a construção do projeto que Gorbachev batizou de “Casa Comum Europeia”), a reforma da KGB, a anistia dos dissidentes e a dissolução do Pacto de Varsóvia.

Em The Perestroika Deception (1995), que dá continuidade à obra anterior, a explicação sobre o papel da KGB na elaboração da perestroika é aprofundada. Como explica Golitsyn – integrante do pequeno círculo de executores do plano e, portanto, testemunha ocular da história –, no final dos anos 1950, o então chefe da KGB Alexander Shelepin foi mentor de uma importante mudança de orientação no serviço secreto soviético, com a criação de uma espécie de “KGB dentro da KGB”. Tendo sido fortemente direcionada à repressão interna nos tempos de Stalin, a KGB devia agora, por meio de sua novíssima facção, converter-se numa arma política muito mais sofisticada, com ênfase na desinformação voltada para o público externo, e com o objetivo precípuo de influenciar processos de decisão nos países ocidentais. Em particular, Shelepin pretendia projetar internacionalmente uma imagem de fragilidade do bloco soviético.

A estratégia foi parcialmente admitida pelo acadêmico soviético Georgy Arbatov, um dos idealizadores da perestroika, e citado por Golitsyn: “A imagem do inimigo que está desaparecendo foi absolutamente necessária à política externa e militar dos Estados Unidos e seus aliados. A destruição desse estereótipo é a arma de Gorbatchev... Uma grande guinada foi dada nas relações internacionais, e, no entanto, algumas pessoas não estão prontas para tanto... A coisa mais terrível que nós pudemos fazer por enquanto foi tê-las privado da imagem do inimigo”.

O conceito de “imagem do inimigo” também aparece em Eduard Shevardnadze, chanceler sob o governo de Gorbachev, e talvez o principal mentor intelectual da perestroika. Ele escreve em L’avenir s’Écrit Liberté (1991): “A ‘imagem do inimigo’ havia invadido a consciência de milhões de pessoas em todas as partes do mundo. Apagar, destruir essa ‘imagem’ é talvez o objetivo mais importante num contexto de evolução mundial, no qual se aproximam e se erguem à máxima altura os autênticos inimigos da humanidade que são a guerra nuclear, a catástrofe ecológica ou a desintegração do sistema econômico mundial”.

Como veremos no artigo da semana que vem, da perspectiva comunista, o abandono do comunismo tradicional em favor do globalismo é parte essencial do esforço estratégico de desfazer no Ocidente essa “imagem do inimigo”. Portanto, o que acabou ali na virada da década de 1980 para a de 1990 foi menos o comunismo do que a sua “imagem” habitual, a partir do que o inimigo do inimigo ficou desorientado. Auxiliada pela auto-ilusão liberal-conservadora descrita no início deste artigo, a estratégia foi um sucesso.

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