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Guerra cultural
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

É bem recente o ingresso da expressão “guerra cultural” no debate público brasileiro. E, ao contrário do que ocorreu nos EUA – seu contexto original de aparição –, criou-se por aqui toda sorte de confusão em torno do seu significado. A mais recente peça nesse mosaico caótico de incompreensão foi acrescida pelo acadêmico João Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj, que, embora de resto tenha uma obra de valor em crítica literária, não parece ter ideia do que está falando sobre o tema em pauta.

Em entrevista recente ao jornal goiano Opção, e com um ar comicamente arquimédico, Castro Rocha alega ter descoberto a chave para a compreensão do que chama de “guerra cultural bolsonarista”, e atribui o fenômeno a um obscuro documento de circulação restrita em meios militares: o Orvil (“livro” ao contrário), idealizado como resposta a Brasil: Nunca Mais, o livro negro da ditadura militar publicado em 1985. Para Castro Rocha, a guerra cultural no Brasil contemporâneo, tendo pouca relação com o que se passou na América e na Europa, consistiria basicamente na proposta de “revisão” da história do regime militar, a fim de, segundo ele, “destruir todas as instituições que caminharam no sentido do fortalecimento da democracia e da salvaguarda das instituições”.

A nova esquerda já vinha voltando a sua artilharia pesada na direção da cultura havia décadas

Em primeiro lugar, reduzir as guerras culturais brasileiras ao governo e à figura do presidente é não compreender nada da dinâmica social da história recente. Bolsonaro e seus correligionários são, evidentemente, atores nessas guerras. Mas são, sobretudo, seu produto. As nossas guerras culturais explicam-se por conflitos reais e profundos entre valores conservadores e valores progressistas – os primeiros, encarnados de maneira difusa e pragmática pelo grosso da população; os segundos, sistematizados teoricamente por uma classe falante cada vez mais apartada daquela.

O conceito de “guerra cultural” foi consolidado nos EUA dos anos 1990 com o livro Culture Wars, de James Davison Hunter. Surgiu como ferramenta para descrever a reação (tardia) de forças conservadoras à contracultura dos anos 1960, movimento encabeçado pela chamada nova esquerda, e que havia mobilizado um verdadeiro ataque aos valores culturais americanos tradicionais – sobretudo no que diz respeito a temas como família, sexualidade, religião e patriotismo.

Como escreveu o frankfurtiano Herbert Marcuse em Uma teoria crítica da sociedade, o propósito da esquerda contracultural (pós-soviética) era claro: “Subversão não apenas da estrutura político-econômica estabelecida, mas também de toda a cultura estabelecida, que os radicais definem como cultura burguesa. Essa revolução cultural atinge os modos de se vestir, de selecionar e preparar os alimentos, o comportamento sexual, a linguagem, passando pela negação e crítica das obras de arte mais celebradas, da literatura, da música. Não é exagero dizer que essa revolução cultural não apenas precede e prepara o solo para a revolução política (incluindo aí as mudanças econômicas), como também a absorve em si mesma... A liberdade começa com a emancipação dos sentidos humanos”.

É significativo que a expressão “guerra cultural” só tenha surgido quando, na década de 1980, o conservadorismo reagiu àquela investida tão bem descrita (e idealizada) por Marcuse. Muito embora Camille Paglia tenha, por exemplo, caracterizado o livro do conservador Allan Bloom (The Closing of the American Mind) como “o primeiro disparo nas guerras culturais americanas”, o fato é que a nova esquerda já vinha voltando a sua artilharia pesada na direção da cultura havia pelo menos duas décadas.

Reduzir as guerras culturais brasileiras a Bolsonaro é não compreender nada da história recente. Bolsonaro e seus correligionários são atores nessas guerras, mas são, sobretudo, seu produto

No Brasil ocorreu algo parecido. Depois de décadas de completa uniformidade de discurso no debate público nacional, foi só recentemente que conservadores e liberais começaram a enfrentar a esquerda de maneira mais sistemática no terreno da cultura (e não apenas, como era hábito, no da economia). Mas seria tão absurdo supor que esse enfrentamento originou o conflito quanto imaginar que a Segunda Guerra teve início com a invasão americana à Normandia. Então é importante ressaltar que “guerra cultural” não é uma política deste governo ou mera retórica ideológica. Trata-se, ao contrário, de um dado da realidade, um contexto histórico que, inclusive, ajuda a explicar uma análise tão torta quanto a do professor de Literatura da Uerj.

Porque, como bem disse em seu perfil no Facebook o colunista desta Gazeta do Povo Francisco Escorsim – que recebeu daquele a pecha de “intelectual bolsonarista”, e que teve o sentido de uma de suas palestras sobre guerra cultural totalmente distorcido pelo mesmo –, quem parece estar em guerra é o próprio Castro Rocha. Apenas que, fingindo oferecer uma descrição científica e objetiva do fenômeno, pretende manter-se invisível aos radares inimigos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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