“Tamanha tem sido a desproporção entre a atenção devotada aos crimes nazistas e a devotada aos crimes comunistas que um duplo padrão de julgamento moral emergiu; de fato, a desproporção transformou a comparação em si mesma num sinal de mau gosto político.” (Martin Malia, Nazismo-Comunismo: delineando a comparação)
“A ideia inteiramente negativa de ‘antifascismo’ supria a impossibilidade de aventar algo de positivo que pudesse unir as democracias liberais ao comunismo stalinista. Ela era vaga o bastante para permitir que Stalin esmagasse a democracia em toda parte em que suas armas a haviam levado, e precisa o suficiente para condenar como blasfematória qualquer comparação entre o seu regime e o de Hitler.” (François Furet, O Passado de uma Ilusão)
Na edição de ontem, dia 8, do programa Opinião, da Jovem Pan, os comentaristas políticos Adrilles Jorge e Diogo Schelp discutiam a polêmica do momento: a problemática fala do YouTuber Monark em favor da liberdade de expressão e associação de nazistas, comentário que resultou numa intensa campanha de cancelamento e rendeu ao sujeito a injusta acusação de fazer apologia ao nazismo, algo que, na realidade, ele não fez em momento algum. Fenômeno característico de nossa época de julgamentos sumários e linchamentos virtuosos, o debate deu azo à emergência de uma polêmica dentro da polêmica, quando, justo após tecer comentários favoráveis à criminalização do nazismo, Adrilles se despediu com um gesto que foi confundido (a meu ver, também injusta e maliciosamente) com a famigerada saudação nazista, e que lhe custou o emprego.
Não vou entrar, por ora, em nenhuma das polêmicas mencionadas. Sobre o caso Monark, darei breve opinião ao fim deste texto, mais para saciar uma eventual curiosidade dos leitores (lembrando, todavia, que minhas opiniões próprias são muito menos relevantes do que as informações que costumo trazer para as fundamentar). O que quero mesmo é destacar um determinado trecho da discussão entre Adrilles e Schelp. Trata de um assunto que, em vista do evento escandaloso subsequente, acabou obliterado, mas que, a meu ver, está na essência do problema cultural nacional, em que uma classe falante histriônica afeta escândalo com uma ideologia genocida – mas felizmente extinta e universalmente condenada – apenas para acobertar uma ideologia tão ou mais genocida, cheia de adeptos atuantes e orgulhosos, mas jamais condenada a contento. Como sobre elas bem escreveu Alain Besançon em A Infelicidade do Século:
“O Nazismo, apesar de completamente extinto há mais de meio século, segue sendo, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O Comunismo, em compensação, apesar de sua memória mais recente, e apesar inclusive de sua dissolução, beneficiou-se de uma amnésia e de uma anistia que colhem o consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem, como também de seus mais determinados inimigos e até mesmo de suas vítimas. Nem uns nem outros sentem-se confortáveis para tirá-lo do esquecimento. Acontece às vezes que o caixão do Drácula se abre. Foi assim que, no final de 1997, uma obra [O livro negro do comunismo] ousou calcular a soma dos mortos que era possível lhe atribuir. Propunha-se uma cifra de 85 a 100 milhões. O escândalo durou pouco e o caixão já se fecha, sem que, no entanto, essas cifras tenham sido seriamente contestadas.”
Quem quer que tenha alguma familiaridade com a literatura sobre o comunismo sabe que a ideia de extermínio (de “classe”, mas também de “raça”) esteve sempre no cerne do projeto comunista
No debate em tela, Adrilles Jorge tentou abrir o caixão, que logo Diogo Schelp tratou de fechar. Falando do caráter essencialmente genocida do comunismo – regime responsável por mais de 100 milhões de mortos em pouco mais de um século de história –, o primeiro comentarista foi retorquido pelo segundo: “Eles [os comunistas] defendem o extermínio de algum povo?” Infelizmente, Adrilles não soube responder à altura. Hesitante e errático, acabou aceitando a premissa oculta na pergunta, qual seja a de que, ao contrário dos nazistas, os comunistas nunca pregaram o extermínio de algum povo.
Pois bem. A premissa é inteiramente falsa. Quem quer que tenha alguma familiaridade com a literatura sobre o comunismo – esse, definitivamente, não parece ser o caso de Diogo Schelp – sabe que, sim, a ideia de extermínio (de “classe”, mas também de “raça”) esteve sempre no cerne do projeto comunista. De acordo com George Watson, um dos principais historiadores dos textos fundadores do socialismo, foi provavelmente com Marx e Engels, em meados do século 19, a primeira vez na história intelectual do Ocidente que a ideia de genocídio era advogada de maneira explícita.
Watson refere-se particularmente aos ataques que os patriarcas do comunismo dirigiam aos movimentos nacionalistas dos povos eslavos, contra os quais brandiam as glórias do imperialismo austro-húngaro. No capítulo 14 de Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, por exemplo, lemos o seguinte:
“Acabaram, assim, por agora e, provavelmente, para sempre, as tentativas dos eslavos da Alemanha para recuperar uma existência nacional independente... Essas nacionalidades moribundas, os boêmios, os caríntios, os dálmatas etc., tentaram tirar partido da confusão universal de 1848, de modo a restaurar o seu status quo político do ano de 800... O destino natural e inevitável dessas nações moribundas era de permitir que se completasse o progresso de dissolução e de absorção pelos seus vizinhos mais fortes. Essa não é, decerto, uma perspectiva muito lisonjeira para a ambição nacional dos sonhadores pan-eslavistas que tinham conseguido agitar uma parte dos boêmios e dos eslavos do sul; mas podem eles esperar que a história volte atrás mil anos a fim de agradar alguns grupos humanos tísicos que, em toda a parte do território que ocupam, estão penetrados e rodeados de alemães, que, desde tempos quase imemoriais, não tiveram, para todos os efeitos de civilização, outra língua a não ser a alemã, e a quem faltam as mais elementares condições de existência nacional, o número e a solidez de um território?... Depois do seu primeiro esforço, que se evaporou em 1848, e depois da lição que o governo austríaco lhes deu, não é provável que seja feita outra tentativa em ulterior oportunidade. Mas se eles tentarem de novo, com pretextos semelhantes, aliar-se à força contrarrevolucionária, o dever da Alemanha é claro. Nenhum país num estado de revolução e envolvido numa guerra externa pode tolerar uma Vendeia no seu próprio seio”.
Por “Vendeia”, Marx e Engels referiam-se ao motim contrarrevolucionário naquela província ocidental da França, desencadeado em 1793 pelos realistas franceses, que utilizaram o campesinato local para a luta contra a Revolução. O motim foi reprimido com brutalidade e os realistas, massacrados, no episódio que alguns historiadores (ver, entre outros, Reynald Secher) consideram como o primeiro genocídio moderno.
Em O Conflito Magiar, artigo publicado em 1849 na revista Nova Gazeta Renana (editada por Marx), Engels voltava a atacar os pan-eslavistas em termos brutais:
“Essas relíquias de nações impiedosamente mantidas sob botas no curso da história, como dizia Hegel, esse lixo étnico [Völkerabfälle, no original] sempre se transforma em porta-estandarte da contrarrevolução, e assim permanece até o seu completo extermínio [gänzlichen Vertilgung, no original, expressão relativa ao extermínio de pragas e insetos] ou perda de seu caráter nacional, na medida em que a sua própria existência em geral é, por si mesma, um protesto contra uma grande revolução histórica.”
Em Pan-Eslavismo Democrático, também de 1849, os pais fundadores do comunismo afirmam que “nada na história se conquista sem violência e crueldade implacável”, e que, portanto, haveria fatalmente “uma batalha inexorável de vida ou morte contra aqueles eslavos que traíssem a Revolução; uma luta de aniquilação e terror cruel – em defesa não dos interesses da Alemanha, mas dos interesses da Revolução”.
O comunismo nunca pregou coisas bonitas, sequer mesmo em tese. As pretensas “igualdade e fraternidade” prometidas deveriam vir, necessariamente, após a eliminação total do “inimigo de classe”
E ainda há opinadores social-democratas com a ousadia de afirmar que a grande diferença entre comunismo e nazismo se dá ao nível do discurso, pois, ao contrário do segundo, o primeiro “prega igualdade e fraternidade”, ou “coisas em tese bonitas”. Não, o comunismo nunca pregou coisas bonitas, sequer mesmo em tese. As pretensas “igualdade e fraternidade” prometidas – como sabe qualquer um versado nessa literatura – devem vir, necessariamente, após a eliminação total (gänzlichen Vertilgung, como se exprimiu Engels) do “inimigo de classe” – não raro identificado a toda uma “raça” inferior (ou Völkerabfälle, como Marx e Engles referiam-se, entre outros, aos eslavos).
Frequentemente, aliás, o “inimigo de classe” era o mesmo dos nazistas: os judeus. Sim, porque hoje em dia, depois das pesquisas documentais de historiadores como Richard Pipes e Gennadi Kostyrchenko, já não é possível a quem queira se meter a falar desses assuntos ignorar o fato de que Lenin e Stalin foram dois viscerais antissemitas. Pipes, por exemplo, baseou-se em quase 7 mil manuscritos inéditos de Lenin, tornados públicos em 1991, com o colapso da União Soviética. Dentre várias coisas, os documentos mostram a indiferença de Lenin para com o sofrimento até mesmo de seus pretensos “camaradas”. Quando judeus comunistas lhe enviaram cartas com notícias dos pogroms perpetrados pelo Exército Vermelho em sua retirada da Polônia, tudo o que fez o líder bolchevique foi rabiscá-las com os dizeres: “Arquive-se”.
Os arquivos vasculhados por Pipes revelam um líder bolchevique cruel, cínico e desumano, verdadeiro modelo para o estilo de seu sucessor, Josef Stalin – sobre o qual é escusado dizer muita coisa, bastando lembrá-lo, por exemplo, como responsável pelo Holodomor, o genocídio do povo ucraniano, que a imprensa “profissional” da época, encarnada na figura do (até hoje) prêmio Pulitzer Walter Duranty, também fez questão de esconder (recomendo, sobre isso, o filme À Sombra de Stalin). Acerca de Lenin, o historiador não se furtou a emitir este juízo categórico: “No que diz respeito à personalidade de Lenin, notamos de imediato o seu completo desprezo pela vida humana, exceto em relação à sua própria família e aliados próximos”.
Aquele desprezo nunca deixava de se expressar em atos políticos. Como quando, em conhecida diretiva às autoridades bolcheviques da província de Penza, onde camponeses (“kulaks”) se insurgiram contra a política de confisco de grãos, Lenin ordenou: “O levante deve ser reprimido de maneira inclemente. Devemos dar o exemplo. Enforquem publicamente não menos do que uma centena de kulaks, homens ricos e sanguessugas. Divulguem os seus nomes. Confisquem-lhes todos os grãos. Façam de tal modo que, num raio de centenas de quilômetros, as pessoas vejam, tremam, saibam e gritem: estão estrangulando, e irão estrangular até a morte, os sanguessugas kulaks”.
Nota-se claramente que, em seu imperativo genocida, nazismo e comunismo são “gêmeos heterozigotos”, como se exprimiu Pierre Chaunu, ou “as duas faces de Janus”, como preferiu A. James Gregor. Inerente a ambos os totalitarismos é o método do extermínio por categoria. Nesses regimes, as pessoas não eram punidas por algo que tivessem feito, mas por aquilo que eram – um judeu, um eslavo, um burguês, um kulak. Para a construção da sociedade futura, esses representantes do “Velho Homem” deveriam ser eliminados, não sem antes passar por um processo prévio de desumanização. O jargão desumanizador era, aliás, bem similar em ambos os regimes. Hitler declarou sobre os judeus: “Já não são seres humanos. São animais. Nossa tarefa não é, portanto, humanitária, mas cirúrgica. Caso contrário, a Europa perecerá sob a doença judia”. Algo parecido ao que Lazar Kaganovich, braço direito de Stalin, disse sobre os inimigos do Estado soviético: “Pensem na humanidade como um grande e único corpo, mas que, periodicamente, requer algum tipo de cirurgia. Ora, eu não preciso lembrá-los de que não se faz uma cirurgia sem cortar membros, destruir tecidos e derramar sangue”. Discurso bonito? Igualdade? Fraternidade? Só na cabeça de pseudointelectual de miolo mole...
É por nunca ter seus crimes eviscerados como o foram os crimes nazistas que, embora forte e vigoroso até os dias de hoje (haja visto o exército de propagandistas a declarar que ele nem mais existe), o comunismo seja ainda tratado como movimento político legítimo. É por isso que, enquanto não nazistas são punidos por associações forçadas, baseadas em gestos e palavras incertos, comunistas confessos podem defender abertamente os métodos de Lenin e Stalin e, ao mesmo tempo, limpar a própria sujeira na adesão ao linchamento de nazistas de faz-de-conta. A mesma parlamentar comunista que, com toda a tranquilidade, e sem que nenhuma consequência se lhe advenha, exalta a “fogueira” de Stalin celebra a demissão do “nazista” Adrilles Jorge. Se o YouTuber destrambelhado tem a vida e a carreira arruinadas por conta de palavras mal ditas, o influencer orgulhosamente stalinista, que defende a execução de liberais e conservadores, é tranquilamente convidado para um programa de entrevistas na maior emissora do país. Assim é porque, como Besançon resumiu magistralmente, “cada experiência comunista recomeça na inocência”.
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Por fim, eis agora aquilo que menos importa, mas que não me furtarei a dar: minha opinião sobre o caso Monark, sujeito de quem, até então, jamais ouvira falar. Como já disse, acho absurdo, canalha mesmo, extrair daquela sua fala inconsequente a conclusão de que ele é um nazista ou apologista do nazismo. Por outro lado, diferentemente dele, sou totalmente contrário à proposta de tornar legal a organização de um partido nazista no Brasil. E não o faço pelas frágeis razões popperianas tantas vezes alegadas nesse tipo de debate (acho Karl Popper, aliás, um autor superestimado). Não recorro, pois, ao famigerado “paradoxo da tolerância”, segundo o qual não se pode tolerar os intolerantes. Ao contrário do que sugere a doutrina liberal/libertária da “sociedade aberta” – da qual Monark parece ser entusiasta –, a política não é arena para o mero confronto de ideias, mas para a disputa por poder. Não estaríamos, pois, falando de simples liberdade de expressão, mas de associação. Eis por que as coisas sejam um tanto mais complicadas...
Um partido político não é um clube de debates, mas uma organização que mobiliza pessoas a fim de impor certas vontades políticas, seja por meio de pressão exercida pela militância, seja por via da ocupação de algum cargo eletivo. Diferentemente do que se passa nos EUA – onde a sociedade civil tem mais ingerência sobre o processo de associação política –, os partidos políticos brasileiros gozam de excessivos privilégios institucionais, legais e financeiros, sendo bancados pelo Estado (leia-se, por todos os “contribuintes”). No caso da hipotética legalização e institucionalização de um partido nazista, teríamos o financiamento público de um movimento político que tem na proposta do genocídio de “raças inferiores” sua ideia-mestra e razão de ser.
O Brasil jamais deveria permitir a fundação, organização e manutenção de um partido nazista. E, na minha opinião, isso deveria servir também para o comunismo, movimento que também é essencialmente criminoso e genocida
Uma coisa é discutir em abstrato a possibilidade – já em si mesma repulsiva, para a maioria de nós – de se garantir a liberdade de expressão individual para eventuais simpatizantes do nazismo (se é que eles existem). Outra bem diferente é permitir que esses indivíduos hipotéticos se associem e se integrem à vida política regular do país, podendo eventualmente fazer leis, aprovar projetos, mobilizar militantes, fazer barulho. No caso de um partido nazista, não haveria como distinguir entre atividade política e atividade criminosa, e, portanto, o que o Estado acabaria por chancelar é uma organização político-criminosa.
Portanto, o Brasil jamais deveria permitir a fundação, organização e manutenção de partidos com esse tipo de ideologia e agenda. Isso serve para o nazismo. E, a meu ver, deveria servir também para o comunismo, movimento que, como vimos, também é essencialmente criminoso e genocida, como criminosos e potencialmente genocidas são todos e quaisquer partidos nele inspirados. Que, numa democracia disfuncional como a nossa, internamente corroída pela presença hegemônica de uma cultura política filocomunista, esses crimes sejam negados, perdoados ou mesmo glorificados, não significa que sejam menos criminosos. Daí que a foice e o martelo, em vez de desfilar livremente no peito dos jovens desavisados, deve ocupar o mesmo lugar que o da suástica, sua parente próxima: a lata de lixo da história. E que, sempre juntas (como no pacto Molotov-Ribbentrop), as duas nunca mais saiam de lá!
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