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Ariane Sherine e Richard Dawkins no lançamento da campanha do "ônibus ateísta", em Londres, em 2009.
Ariane Sherine e Richard Dawkins no lançamento da campanha do “ônibus ateísta”, em Londres, em 2009.| Foto: Zoe Margolis/Atheist Bus Campaign

“Even atheism, in post-Christian times, draws its strength from the Christian faith in salvation” (Karl Löwith, Meaning in History)

Terminei há pouco a leitura de um pequeno livro do bispo americano Robert Barron, um dos maiores intelectuais e apologistas católicos do nosso tempo. Em Answering the Atheists, o autor confronta os desafios à fé lançados pelo neoateísmo, o histriônico movimento intelectual e político fundado na aurora deste século pelo biólogo Richard Dawkins, pelo neurocientista Sam Harris, pelo filósofo Daniel Dennett e pelo jornalista e crítico literário Christopher Hitchens – que, desde então, ficaram conhecidos como “os quatro cavaleiros do ateísmo”.

A exemplo de outras obras dedicadas ao tema, também Barron abre o livro com uma pergunta óbvia: o que há de realmente novo no neoateísmo que justifique o uso do prefixo? Sem entrar, por ora, na resposta dada por Barron, e respondendo à queima-roupa, eu diria que substancialmente nada. Como escreveu certa vez o jornalista Damon Linker, o neoateísmo “não é particularmente novo. Ele pertence a uma genealogia intelectual que data de centenas de anos atrás, num momento em que o pensamento ateísta se bifurcou em duas tradições: uma dedicada principalmente à busca imparcial da verdade; a outra, movida por um desprezo visceral pela fé alheia”.

Linker referia-se a duas variantes do pensamento iluminista: a primeira, não literalmente ateísta (já que, entre seus expoentes, havia céticos e deístas, mas também cristãos), mas ainda assim fundamental para o imaginário secularista moderno, é propriamente filosófica ou teorética (no sentido da busca intelectual pela verdade), remetendo a pensadores como Locke, Hume e Kant. A segunda, mais dedicada à crítica cultural, à polêmica jornalística e ao ativismo anticlerical, é representada principalmente pelos Philosophes franceses (em especial Voltaire, La Mettrie, Diderot, d’Alambert, Helvétius e d’Holbach).

É a essa segunda vertente que o movimento neoateísta se vincula genealogicamente. As obras de Dawkins e companhia estão recheadas de afirmações praticamente idênticas àquelas que, por exemplo, o barão D’Holbach expressou em seu Le Système de La Nature, a exemplo desta: “Se a ignorância sobre a natureza pariu os deuses, o conhecimento da natureza tende a destruí-los. Assim que o homem se torna esclarecido, os seus poderes aumentam, bem como os seus recursos, em paralelo ao aumento do conhecimento. As ciências, as artes e a indústria fornecem-lhe auxílio, a experiência encoraja o progresso... Quando devidamente instruído, o homem deixa de ser supersticioso”.

O que há de realmente novo no neoateísmo que justifique o uso do prefixo? Muito pouco

Mas, se não chega a propor novas ideias, é certo que o neoateísmo oferece uma nova embalagem para ideias antigas, uma roupagem mais atrativa, o que explica, em parte, o sucesso editorial do movimento. O neoateísmo surge de uma decepção com o fracasso das chamadas “teorias da secularização” formuladas por nomes como Feuerbach, Marx e Freud, e que previram (equivocadamente, hoje se pode dizer) o fim do pensamento religioso na medida em que a ciência e a técnica progredissem. Entre meados do século 19 e meados do século 20, tudo parecia indicar que o “delírio” Deus (como o caracteriza Dawkins) seria definitivamente extirpado da mente humana.

Após o 11 de setembro de 2001, com o ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center, tudo mudou. Criou-se, a partir de então, a impressão de que a religião estava mais viva do que nunca, revelando ao mundo a sua pior face: o fundamentalismo. Houve quem sustentasse que o terror em Manhattan era o resultado de uma guerra religiosa: de um lado, os EUA, governados por George W. Bush (um cristão fundamentalista, segundo essa visão); de outro, o mundo islâmico, para muitos quase um sinônimo de fanatismo religioso e irracionalidade. A posição do ateísta francês Michel Onfray resume bem o estado de espírito das elites culturais e intelectuais do Ocidente no período: “Neste momento em que a batalha final – já perdida – clama pela defesa dos valores do Iluminismo contra as proposições mágicas, devemos lutar por um secularismo pós-cristão, ou seja, ateísta, militante e radicalmente oposto à escolha entre o judaico-cristianismo ocidental e o seu adversário islâmico – nem Bíblia, nem Corão. Eu insisto em preferir os filósofos aos rabinos, padres, imãs, aiatolás e mulás”.

Com efeito, de todos os órfãos de Diderot, D‘Holbach, Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud, os neoateístas foram os que mais acusaram o golpe, sentindo que as pretensas conquistas do século das luzes estavam longe de consolidadas, e que, portanto, seria preciso atrair mais gente para a sua visão de mundo. Surgiu daí um movimento de catequese ateísta, com o objetivo de levar a crítica à religião para além das fronteiras do universo intelectual e científico. “Este livro saiu, sim, para converter” – diz Dawkins sobre o seu best-seller Deus, um delírio. Tratava-se, em certo sentido, de um processo de “renovação carismática” ocorrendo no interior do ateísmo, e o jornalista Christopher Hitchens chegou a propor expressamente um “Iluminismo renovado”.

Para alguns analistas, tudo isso sugere que o neoateísmo seja um movimento de tipo reacionário, em busca desesperada por conter um processo que o teólogo Alister McGrath chamou de “o crepúsculo do ateísmo”. Tal é, por exemplo, a visão do filósofo canadense Charles Taylor. No último capítulo de seu monumental A Secular Age, o autor imaginava dois possíveis cenários para o desenvolvimento da religião no Ocidente. O primeiro, fruto da teoria da secularização, previa uma erosão contínua da relevância pública das tradições religiosas. O segundo, ao contrário, sugeria que as tradições religiosas fossem permanecer como um importante aspecto da eterna busca humana por sentido.

O neoateísmo oferece uma nova embalagem para ideias antigas, uma roupagem mais atrativa, o que explica, em parte, o sucesso editorial do movimento

Numa entrevista posterior ao filósofo Ronald Kuipers, Taylor viria a comentar sobre aquela sua alternativa: “Aposto as minhas fichas no segundo cenário... Os ateus estão reagindo do mesmo modo que os fundamentalistas religiosos reagiram no passado. São pessoas que, por muito tempo, estiveram confortáveis com a sua própria posição, como se nela tudo fizesse sentido. Ao serem confrontadas por algo diferente, elas simplesmente enlouquecem, e começam a recorrer aos argumentos mais inacreditavelmente estapafúrdios, num tom de indignação e raiva. E esse é o problema com toda a narrativa da secularização”.

Taylor tem razão em apontar esse aspecto reacionário do neoateísmo. Por outro lado, saindo do nível exotérico e entrando no esotérico, é possível perceber uma continuidade do neoateísmo com uma tradição revolucionária anterior ao próprio Iluminismo, e que não está fundada sobre alguma doutrina comum, mas, por assim dizer, numa certa comunhão espiritual. Um mesmo estado de espírito parece unir os Philosophes franceses e os neoateístas, passando pelos secularistas da virada do século 19 para o 20. E, por incrível que possa parecer, os seus rudimentos nascem no interior do campo religioso, já nos primeiros séculos da Era Cristã. Ali brota uma semente de revolta religiosa que, muitos séculos mais tarde, assumiria a forma de um discurso antirreligioso.

A análise de Eric Voegelin sobre o fenômeno do gnosticismo (antigo e moderno) – cujo tema perene é a revolta contra Deus e a criação – ajuda-nos a compreender todo esse processo. Voegelin procurou explicar as origens intelectuais e espirituais dos totalitarismos europeus e apreender sua significação no quadro mais amplo da experiência humana da transcendência. Para isso, ao lado de uma teoria da política moderna, desenvolveu uma antropologia filosófica baseada nas tradições platônica e judaico-cristã, que caracterizam o homem como um ser cuja essência é viver a meio caminho (metaxy, na terminologia platônica) entre a transcendência e a imanência ou, em linguagem aristotélica, entre Deus e as bestas.

Voegelin expôs os elementos de sua antropologia filosófica ao longo de toda sua obra, e de maneira especialmente concisa no ensaio Equivalences of Experience and Symbolization in History: “A Existência tem a estrutura do entre, da metaxy platônica, e se há algo de constante na história da humanidade é a linguagem da tensão entre vida e morte, imortalidade e mortalidade, perfeição e imperfeição, tempo e eternidade, ordem e desordem, verdade e falsidade, sentido e ausência de sentido; entre o amor Dei e o amor sui, a alma aberta e a alma fechada; entre as virtudes da abertura ao fundamento do ser, tal como a fé, o amor e a esperança, e os vícios do fechamento à transcendência, tais como a húbris e a revolta”.

O movimento neoateísta pode ser considerado como mais um capítulo de uma longa história de recusa da transcendência

Para Voegelin, a antropologia filosófica platônico-aristotélica guarda correspondência com a tradição teológica judaico-cristã, sendo que a transcendência platônica (Agathon) foi simbolizada, no contexto abraâmico, como Yahweh. O conceito grego de metaxy equivale à noção latina de participatio, sugerindo, ambos, a participação humana no divino, uma ideia que constitui o ponto nevrálgico da antropologia filosófica pré-moderna. “N'Ele vivemos, nos movemos e somos”, diz São Paulo nos Atos dos Apóstolos.

A razão (noûs) e o espírito (pneuma) são, segundo o filósofo alemão, os dois modos da constituição humana generalizados na ideia de homem. As experiências da razão e do espírito convergem no ponto em que o homem experiencia a si próprio como ente que não existe por si. A percepção humana mais básica e original é a de que existimos num mundo já dado, mundo que, em si mesmo, existe em função de um mistério. O nome desse mistério, ou da causa desse ser do mundo, do qual o homem é um componente, é Deus. Segundo a antropologia clássica, o homem é um ser teomórfico, criado à imagem de Deus (imago Dei).

O cerne do pensamento de Eric Voegelin consiste na sugestão de que os movimentos totalitários de massa se fundaram precisamente na recusa da antropologia filosófica clássica, propondo, em lugar dela, um mergulho na imanência. A antropologia filosófica moderna caracteriza-se pela rejeição de uma ordem transcendente do ser (cujo simbolismo mais conhecido é a “morte de Deus” nietzscheana), que, graças à recusa de sua participação no divino, resulta numa perda de dignidade do homem. Por sua vez, a desdivinização leva necessariamente à desumanização. Nos termos de Aristóteles, pode-se dizer que essa desumanização se dá, por assim dizer, ora para baixo, na direção das bestas (panteísmo, imanentismo, ecologismo), ora para cima, na direção de Deus (a autodivinização: o Super-Homem e seus avatares).

Tendo identificado o surgimento da experiência existencial de recusa da transcendência ou “fechamento da alma” no antigo gnosticismo, Voegelin procurou relacioná-lo à experiência política moderna. Assim como outros intelectuais de sua geração (um Thomas Mann, um Robert Musil, entre outros), notou que as ideologias totalitárias da época propunham muito mais do que uma mera revolução política. Tratava-se, em vez disso, de um amplo projeto civilizacional, visando a transformar radicalmente a natureza humana e o lugar do homem na ordem cósmica. De certa maneira, então, o movimento neoateísta pode ser considerado como mais um capítulo dessa longa história de recusa da transcendência, um caso particular de gnosticismo.

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