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O ex-deputado federal Jean Wyllis. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
O ex-deputado federal Jean Wyllis. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil| Foto:

Mal acabara de ser publicado o artigo da semana passada sobre o politicamente correto, e o jornalismo brasileiro já tratava de confirmar o meu argumento, segundo o qual essa versão soft do velho totalitarismo comunista nada tem a ver, tal como alegam os seus apologistas, com educação ou com não ofender os outros, mas unicamente com poder político: o poder de monopolizar o debate público, subtrair privilégios do Estado e estigmatizar os críticos.

A primeira a ilustrá-lo foi a jornalista Flávia Oliveira, do grupo Globo, que no dia 26 de janeiro escreveu em seu Twitter sobre o caso do deputado psolista que, alegando ameaças contra a sua vida, desistiu do mandato e se autoexilou na Espanha: “Jean Wyllys deixa a vida pública em prol da particular. É revolucionária a perspectiva de um homossexual, negro, nordestino tornar-se ancião no Brasil. Indigno é um país democrático não conseguir garantir a integridade de um parlamentar”.

Não pretendo, neste artigo, entrar no mérito do caso Jean Wyllys, um dos mais obstinados difusores da narrativa fraudulenta (para não dizer antidemocrática) de que, com a eleição do Bolsonaro, o Brasil transformou-se num regime de exceção. Nem, tampouco, comentar a falácia segundo a qual, no Brasil, os homossexuais, negros e nordestinos não chegam à terceira idade por conta de discriminação, uma tese que não surpreenderia se oriunda da baixa militância dos centros acadêmicos, mas que espanta quando dita por uma jornalista do maior conglomerado midiático nacional. Quero apenas registrar a curiosa classificação do deputado psolista – cujo fenótipo é tipicamente nordestino, com mais traços indígenas que africanos – como “negro”.

Nota-se claramente aí que, no vocabulário politicamente correto, negro não se refere a características fenotípicas, nem sequer a uma pretensa tradição cultural (posto que inventada) de matriz africana. Trata-se, em vez disso, de uma espécie de título honorífico, outorgado unicamente com base em afinidades político-ideológicas. Assim é que, por pertencer à posição política correta (esquerda), Jean Wyllys tem direito à honraria, desfrutando dos privilégios que lhe são inerentes, como, por exemplo, o de adquirir um “lugar de fala”, de onde pode acusar opositores políticos de racistas e, com base nisso, constrangê-los ao silêncio, deslegitimando previamente todos os seus argumentos.

Por, ao contrário de Wyllys, pertencer à posição política errada (direita), o vereador Fernando Holiday (DEM/SP) – esse sim, fenotipicamente negro, e também homossexual – não tem direito ao título e às suas prerrogativas. Considerado pela esquerda um traidor da “raça”, ou um “capitão do mato” (injúria racial que lhe é frequentemente dirigida, inclusive por Ciro Gomes, candidato à presidência no último pleito), Holiday é tido por indigno até mesmo de solidariedade humana básica, como quando foi alvo de um atentado político perpetrado por sindicalistas e militantes de esquerda, que dispararam um tiro de arma de fogo contra o seu gabinete, por sorte não acertando em ninguém. Contrastando com a reação histriônica da imprensa no caso de Wyllys, um silêncio glacial pairou sobre o ataque a Holiday, ainda que tenha sido provado e periciado. A jornalista Flávia Oliveira não viu aí qualquer ameaça à democracia. E, claro, nada se falou nos jornais sobre racismo ou homofobia.

Outra ilustração da corrupção ética do politicamente correto veio em matéria do portal G1 da Bahia. “Publicitário critica escola nas redes sociais por usar livro de Lázaro Ramos, post viraliza e internautas apontam racismo” – diz a chamada, em típica novilíngua midiática, que recorre a fórmulas tais como “internautas apontam” ou “diz leitor” (versões já degeneradas do velho truque do “dizem especialistas”) para veicular como notícia – usando pretensos leitores e internautas como laranjas – a opinião hegemônica na redação, falsamente retratada como socialmente representativa. A reportagem trata da opinião do publicitário Leo Pirão sobre a escolha de um livro como material didático para alunos do ensino médio de uma escola de Salvador.

O livro em questão chama-se Na Minha Pele e, de acordo com a reportagem, “aborda empoderamento negro e preconceito”. Foi a respeito dele que o publicitário se manifestou nos seguintes termos: “É esse tipo de lixo que as escolas estão empurrando goela abaixo nos nossos jovens”. Por se mostrar contrário à opção da escola, que claramente prioriza o ativismo político em detrimento da qualidade literária, o crítico foi estigmatizado como racista pelo G1. Ao fingir noticiar a reação contrária de internautas, o que o portal pretendia mesmo era estimular e multiplicar essa reação, sedimentando na imaginação dos leitores a chantagem politicamente correta segundo a qual criticar a obra de um autor negro equivale a ser racista. A pauta estava pronta de antemão, e os internautas foram escolhidos a dedo apenas para legitimá-la. Será que os jornalistas brasileiros acham que alguém ainda se deixa enganar por essas pequenas malícias de redação?

Note-se que, em nenhum momento, o publicitário faz menção à “raça” (ou seja, à cor de pele) do autor da obra. Seu questionamento voltava-se à excêntrica oferta aos alunos de um autor menor (para sermos generosos), quando a literatura nacional dispõe de tantos bons escritores. Ainda que o objetivo didático fosse abordar a presença negra na cultura brasileira (ou, vá lá, o “empoderamento” do negro) – sou eu agora quem questiona –, por que não optar por obras de (ou sobre) um Cruz e Souza, um Luiz Gama, um José do Patrocínio ou um Lima Barreto? Por que, em lugar desses gigantes culturais e mestres da palavra, preferir alguém que, posto que bem-sucedido em seu ramo de atuação, é uma completa nulidade no da literatura?

Pretendendo estigmatizar como racista uma crítica pertinente, que nada fala sobre “raça”, os redatores da matéria é que adotaram uma lógica racista, admitindo que, para eles, o único “mérito” do autor em questão é o de possuir uma determinada porcentagem de melanina na pele, que o torna imune a críticas. Confirma-se assim a crítica do publicitário: uma obra cuja qualidade deve estar diretamente relacionada ao tom de pele de seu autor só pode mesmo ser uma porcaria, indigna, portanto, de ser oferecida a estudantes.

Eis o resultado da abominável lógica racialista que a intelligentsia acadêmica nacional importou dos EUA, balcanizando a nossa vida cultural, e propondo um apartheid do espírito pelo qual “negros” devem ter uma literatura “negra” voltada única e exclusivamente para “negros”; “brancos”, uma literatura “branca” voltada única e exclusivamente para “brancos”, e assim por diante. Se o leitor acha que exagero, relembro uma outra reportagem do G1 que informava (com entusiasmo) sobre o surgimento de livrarias exclusivas para negros, a exemplo do espaço Bantu, criado em Belo Horizonte por uma jornalista e ativista (se é que ainda há diferença entre uma coisa e outra) sob a seguinte justificativa: “A maior parte da população é negra e, mesmo assim, a maior parte das livrarias não tem livros que nos representam”.

Ficamos sabendo então que Homero não representa os “negros” (essa estranha categoria identitária baseada única e exclusivamente numa certa tonalidade de cor de pele). Nem Dante, Cervantes e Shakespeare. Tampouco Dostoievski e Proust. Para representar os negros, deve-se necessariamente possuir a cor de pele marrom. E, tal como no sul dos EUA na primeira metade do século 20, ou como na África do Sul do apartheid, a cor da pele volta a ser um critério fundamental de avaliação. Já temos, nas universidades, comitês raciais dedicados a avaliar, pelo fenótipo, a legitimidade da “negritude” dos candidatos a cotas, mandando às favas, portanto, o critério de autodeclaração pelo qual a lei das cotas foi vendida ao público. O que falta agora, depois desse estelionato cometido pelos neorracistas politicamente corretos? Plaquinhas com aviso “colored only” e “white only” na porta das livrarias?

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