• Carregando...
Um grupo de alunos de universidades públicas de todo país, durante protesto em Brasília em 2012. Foto: Antônio Cruz/ABr
Um grupo de alunos de universidades públicas de todo país, durante protesto em Brasília em 2012. Foto: Antônio Cruz/ABr| Foto:

“Ele já não era propriamente uma pessoa comum, quer dizer, como essas que a gente encontra todo dia. Suas feições eram bem parecidas com as da pessoa que eu conhecia, mas nada me lembrava com nitidez que eu vivia a seu lado desde muito tempo” (depoimento de um genocida hutu sobre a sua primeira vítima tutsi, em Uma Temporada de Facões: relatos do genocídio em Ruanda, de Jean Hatzfeld)

Há três semanas, a Gazeta do Povo publicou uma ótima matéria sobre a intensa perseguição política sofrida por professores de direita dentro das universidades públicas brasileiras. Entre outros, ficamos sabendo detalhes sobre os casos de Ramon Lima Santos, professor de filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), que quase foi linchado por militantes fantasiados de alunos, sob acusações sistemáticas de ser “fascista”, “racista” e “homofóbico”. Ou de Rodrigo Jungmann, professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), alvo de ataques e ameaças desde 2016, ao ponto de haver precisado instalar grades nas portas e janelas de sua sala, outrora invadida, depredada e marcada com uma pichação que ficou conhecida, e que resume bem o espírito da esquerda acadêmica contemporânea: “Stalin matou foi pouco”. Hoje, gostaria de falar sobre outro exemplo do mesmo tipo de hostilidade, dessa vez sofrida por dois alunos de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos dos Goytacazes, no interior do estado do Rio de Janeiro. Trata-se apenas de um caso típico de um problema crônico no nosso ambiente universitário.

Tudo começou no dia 13 de setembro do ano passado, quando fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), juntamente com o juiz Ralph Manhães, responsável pela fiscalização eleitoral no município, estiveram no Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR) para averiguar uma denúncia anônima sobre propaganda eleitoral irregular dentro do campus. Solicitando a abertura de uma sala utilizada pelo Diretório Central de Estudantes (DCE), e informados de que o diretor não apenas não tinha a chave como tampouco sabia com quem ela poderia estar, os fiscais decidiram arrombar a porta. Como era de se esperar, a atitude provocou um rebuliço na comunidade acadêmica local, onde professores nostálgicos viram-se de volta aos anos 1960, bradando contra a truculência policial, e alunos sonhadores, herdeiros da nostalgia alheia, puderam sentir-se vítimas de uma ditadura imaginária.

Enquanto tudo aquilo acontecia na faculdade, o casal de estudantes Letícia e Eraldo, dois jovens de classe média baixa da periferia de Campos, estava em casa aguardando o horário da sua próxima aula, que começava às 18h. Por meio de amigos, ficaram sabendo que se tornaram os principais suspeitos de fazer a denúncia anônima que levou à ação do TRE. Na condição de únicos alunos de direita das Ciências Sociais no campus, condição que já os apartara da comunidade acadêmica local, era natural que fossem eleitos como bodes expiatórios, sobretudo num período de grande radicalismo político como o das eleições de 2018.

Chegando ao local, Letícia e Eraldo descobriram que a aula fora suspensa, e os alunos, liberados pelos professores para se dirigirem a um espaço ao ar livre conhecido como “Tenda”, onde haveria um debate sobre a ação “truculenta” do TRE e a situação política do país. Já precavidos e desconfiados de que poderiam virar objeto de hostilidade, decidiram registrar em vídeo (ao qual tive acesso) o que se passava no evento. De início, o debate na “Tenda” transcorreu calmamente, sobretudo durante a fala do diretor da faculdade, que, adotando postura institucionalmente correta, explicou o ocorrido e lembrou a todos da necessidade de se respeitar a legislação eleitoral. Mas a fala subsequente de um professor inflamou o ambiente.

Entremeando jargões politicamente melosos tais como “legalidade não é questão de justiça, mas de poder”, “vivemos um momento de ascensão do fascismo” e “política sem paixão é corpo sem alma”, o sujeito defendeu, na prática, que se desrespeitasse a legislação eleitoral fingindo respeitá-la. Criticou ainda a ideia, segundo ele “absurda”, de que a universidade não pode ter partido, e recorreu ao reductio ad ditadurium – o argumento padrão da esquerda, segundo o qual toda oposição aos seus propósitos equivale a uma reedição da ditadura militar. “Essa ação do TRE foi um tiro pela culatra, pois aumentou a minha vontade de ir para a rua fazer mais política para impedir que a direita vença” – acrescentou. E entoou em seguida o embolorado grito de ordem “Fascistas, não passarão”, sendo acompanhado em coro pela manada de imbecis juvenis que, acocorados em passividade constrangedora em face daquela demonstração de “micropoder” (para usar o vocabulário foucaultiano tão em voga nesse ambiente), ainda assim faziam poses, caras e bocas emulando rebeldia.

Àquela altura, Letícia e Eraldo já eram alvos de olhares hostis, comentários maledicentes e deboches. Foi quando subiu ao palco um militante do PCdoB se fazendo de corajoso e dizendo que, apesar de “a direita” estar ali para filmá-lo (disse-o apontando para o nosso casal conservador), falaria sem medo – como se, naquela situação, absolutamente sozinhos contra a massa homogênea de militantes, fossem Eraldo e Letícia o poder opressor e temerário. Ato contínuo, outros militantes-estudantes passaram a questioná-los de maneira mais incisiva. Uma moça de cabelo rosa, com ares de inquisidora, chegou a perguntar o que ainda faziam ali, como se a faculdade fosse propriedade sua e de seus companheiros de militância.

Diante da animosidade crescente, Eraldo decidiu conversar com o diretor e o professor agitador, queixando-se de que estavam permitindo que o evento descambasse para o radicalismo e a intolerância. Foi a deixa para que o segundo retomasse o microfone e, mesmo tendo ciência do ambiente hostil aos dois únicos alunos de direita ali presentes, os expusesse ainda mais, convidando Eraldo a se manifestar “democraticamente” no palco. Como o jovem conservador se recusasse a falar naquelas condições absurdas, tornou-se alvo das vaias e ofensas dos militantes-estudantes ali reunidos, que o acusaram de covarde e chegaram ao cúmulo de lhe dirigir ofensas racistas: “Preto só passa vergonha”. Ao que parece, o professor-agitador conseguira o seu objetivo.

As falas sucederam-se, cada vez mais histriônicas e performáticas, num típico ritual de arrivismo político e cultura assembleísta, em que cada novo ator no palco procurava parecer mais engajado e revolucionário que o anterior, tudo para ganhar pontos com o movimento estudantil e, quem sabe, conquistar uma boa posição na hierarquia partidária. Tratava-se de um festival de mímica, ao mesmo tempo cômico e grotesco. Nada ali era autêntico.

Uma das atrizes políticas, em evidente estado de histeria, e inteiramente enfeitiçada pelas palavras de ordem ecoantes em seu crânio imaturo, virou-se para Letícia e, com olhos fitos na câmera, disse antes de iniciar o seu monólogo: “Oi, fascista”. Havia, nessa pequena fórmula, toda a carga macabra de uma tradição política que a infeliz jovem militante não tinha condições de compreender, e que apenas reproduzia de maneira semiconsciente, como se possuída por um maligno espírito histórico. Pois a acusação de “fascista” foi sempre o modus operandi comunista por excelência, a maneira pela qual desumanizavam adversários antes de eliminá-los com a consciência tranquila.

Não cessou ali, todavia, a hostilidade contra Eraldo e Letícia, que saíram do episódio definitivamente carimbados como “fascistas” e “dedos-duros” pelo tribunal revolucionário acadêmico. A partir de então, ofensas e ameaças aos dois foram compartilhadas em grupos no Facebook, em ataque coordenado no qual tomaram parte alunos e professores. Por ocasião do episódio da facada em Jair Bolsonaro, um aluno dessa fábrica de Adélios em que se converteram as universidades brasileiras sugeriu que Eraldo poderia ter sido o esfaqueado, e que devia “baixar a bola”. Outro, que o pau iria quebrar quando descobrissem a autoria da denúncia. De maneira dissimulada, uma professora alegou estar preocupada com os “estudantes beligerantes”, pois contra eles haveria “consequências físicas e judiciais”. Eraldo e Letícia tiveram até de se abrigar um tempo na biblioteca quando, certo dia, foram avisados de que um ex-aluno da faculdade os perseguia de maneira ameaçadora.

Mas o pior ainda estava por vir. Num paroxismo de abjeção moral, uma professora procurou o orientador do casal dizendo que “o rapaz envolvido na denúncia” – ou seja, Eraldo – acumulava ilegalmente uma bolsa de iniciação científica (PIBIC-CNPq) e uma bolsa de assistência estudantil (Proaes-Pnaes) para estudantes pobres, e que esta última devia ser cancelada (o que de fato acabou acontecendo, apesar de haver controvérsias sobre os critérios da concessão de bolsas de assistência). Sim, para executar uma vingança política, a professora-militante – que, decerto, ganha a vida propagandeando o seu amor aos oprimidos – não hesitou em retirar a bolsa de um jovem negro da periferia.

Enfim, esse é apenas mais um dos exemplos cotidianos da violência física, psicológica e moral sofrida por estudantes universitários de direita ao longo das últimas décadas, com o incentivo manifesto de partidos de extrema-esquerda, que estenderam seus tentáculos por toda a academia, e a omissão do poder público. Mais um dos muitos dramas particulares que, reunidos, compõem a nossa grande tragédia educacional. Devido ao ambiente hostil no qual é forçado a permanecer para obter o seu diploma de ensino superior, Eraldo desenvolveu transtorno de ansiedade e síndrome do pânico. Por conta de dificuldades financeiras e problemas de saúde mental na família, hoje vive com Letícia numa residência humilde no subúrbio de Campos dos Goytacazes. Ali, os dois jovens buscam um no outro o suporte emocional necessário para tolerar mais um ou dois anos daquilo que, se um dia sonharam em chamar de a sua universidade, hoje, desgostosos, só conseguem enxergar como o seu hospício.

A propósito: naquele 13 de setembro de 2018, ao arrombarem a porta da sala do DCE, os fiscais eleitorais encontraram no local 470 panfletos das candidatas Jandira Feghali e Walkíria Nictheroy, ambas do PCdoB. Concentrando a sua fúria indignada nos pretensos denunciantes, todavia, a comunidade acadêmica não viu nada demais no objeto material da denúncia.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]