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Protesto do grupo Black Lives Matter, em 2016.
Protesto do grupo norte-americano Black Lives Matter, em 2016.| Foto: Brian Allen/Voice of America

Comentando dia desses a fala de um colega sobre a ausência de negros nas redações de jornal no Brasil – fala que replicava, como se revolucionária fosse, a surrada tese (originária de ideólogos marxistas brancos, a propósito) sobre o “racismo estrutural” brasileiro –, a jornalista Flávia Oliveira postou o seguinte comentário na sua rede social: “Tocando no ponto da falta de diversidade racial no jornalismo. Acrescento, além da desigualdade estrutural, as redes de relacionamento. Os brancos se conhecem e se escolhem”.

Por comentários desse teor, Flávia Oliveira dá a impressão de que a sua atividade jornalística fica em segundo plano na comparação com aquilo a que realmente se dedica a fazer, e para o qual a primeira não passa de um meio, a saber: militância radical pró-movimento negro. Mais ainda: Flávia não parece ser uma militante da linhagem universalista, pacifista e antirracista de Martin Luther King Jr., mas da tradição revolucionária e agressiva dos Panteras Negras, que racializaram o conceito marxista de luta de classes, enxergando um conflito irreconciliável e essencial entre dois “tipos” de gente: os brancos (que seriam o equivalente racial do burguês) e os negros (versão racial do proletariado).

“Os brancos se conhecem e se escolhem” é uma frase cuja violência verbal não pode ser naturalizada ou minimizada, e merece ser compreendida sem rodeios. Pois o que a jornalista está fazendo, protegida pela aura falsamente virtuosa do politicamente correto, e pela condescendência covarde dos pares, é acusar abertamente os seus chefes e colegas de profissão brancos de racismo. Na dicotomia racialista de Flávia (que, decerto, aprendeu na faculdade a rejeitar o “mito da democracia racial” atribuído a Gilberto Freyre), também há dois “tipos” fundamentais de gente na sociedade brasileira, e o tipo dominante ou opressor – o “branco” – faz de tudo para garantir a hegemonia da sua “raça”, utilizando o critério racial como prioritário sobre todo os demais. Claro está que a jornalista não se preocupa em explicar como ela própria conseguiu furar esse sistema de endogamia racial. Se, no seu meio profissional, os brancos se conhecem e se escolhem tendo o critério racial por base, como Flávia foi parar ali? E outra pergunta: Flávia está propondo que os jornalistas negros adotem a mesma pretensa endogamia racial que ela atribuiu aos brancos?

Dizer que “o Brasil tem uma dívida histórica com os negros” não passa de uma figura de linguagem, e muito ruim, por sinal

O perigoso raciocínio racialista da jornalista da Globo funda-se, entre outras coisas, na recorrente falácia da “dívida histórica” do Brasil para com os negros, por causa da escravidão. Basta abrir os jornais e ligar a televisão para topar com essa narrativa. No ano passado, por exemplo, vimos o assunto ressurgir com força por ocasião da entrevista do então candidato presidencial Jair Bolsonaro no programa Roda Viva. Essa dívida, segundo os que nela acreditam, seria um motivo razoável para justificar a política de cotas raciais nas universidades e no serviço público.

A narrativa apareceu no referido programa quando, contestada pelo entrevistado, foi reafirmada de maneira quase auto-hipnótica pelos entrevistadores. Diante da pergunta retórica de Bolsonaro – “Mas que dívida é essa?” –, o âncora Ricardo Lessa retrucou com um riso debochado, como se acabara de ouvir o maior dos absurdos: “Sim, tem uma dívida histórica”, e enfatizou o adjetivo histórica, como se o tom enfático pudesse encerrar a questão.

Eis o grande problema de se raciocinar por palavras de ordem e figuras de linguagem. Não há nada de errado em palavras de ordem e figuras de linguagem em si mesmas. Elas podem, sim, estar presentes num argumento, para iniciá-lo ou, ao contrário, para encerrá-lo, como síntese da ideia geral apresentada previamente de maneira lógica e articulada. O problema no debate público brasileiro é que palavras de ordem e figuras de linguagem costumam fazer as vezes do argumento em sua totalidade. Não são usadas como meios de expressão de um raciocínio, mas como seus substitutos. Antes que ferramentas de discussão, servem, ao contrário, para interditá-la de antemão, apelando às emoções do ouvinte e instando-o a reagir instintivamente, sem passagem pela reflexão.

Ora, dizer que “o Brasil tem uma dívida histórica com os negros” – frase feita que, nas redações e estúdios da grande imprensa, tornou-se quase um mandamento divino – não passa de uma figura de linguagem, e muito ruim, por sinal. Trata-se, evidentemente, de uma prosopopeia. Por não gozar dos atributos de pessoa, essa entidade chamada Brasil não pode ter dívida com ninguém, evidentemente. Ademais, os negros, os pretensos credores da dívida, também são parte do Brasil. Seriam, portanto, credores e devedores ao mesmo tempo? Na qualidade de elementos do conjunto “Brasil”, teriam uma dívida histórica consigo mesmos? Basta começar a descompactar o clichê para ver o argumento que nele se sustenta ruir.

Falar que “o Brasil tem uma dívida histórica com os negros” pode ser muito bonitinho e atender à vaidade de quem o diz, bem como ao seu desejo incontrolável de apresentar-se socialmente como uma pessoa boa e justa. Mas não serve para muito além disso, porque os problemas começam quando precisamos extrair as consequências dessa figura de linguagem, e discriminar, afinal, entre os que pagam e os que recebem.

É impressionante constatar a quantidade de jornalistas que compraram esse jargão autopromocional, comercializado pelos contrabandistas ideológicos encastelados em nossas universidades, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Com uma arrogância indecente, ele e outros intelectuais marxistas pupilos de Florestan Fernandes trataram de descartar as teses de Gilberto Freyre sobre a formação miscigenada do povo brasileiro em favor de um binarismo racial que, gestado em laboratórios de militância política, e com farto patrocínio de entidades estrangeiras como a Fundação Ford, separa o país em duas categorias antropológicas estanques: os “brancos” e os “negros”.

A mestiçagem brasileira não é um mito, ou um “discurso ideológico para legitimar desigualdades”, como gostam de dizer dez entre dez marxistas. Ela é uma realidade

Ocorre que, a não ser por meio de uma grande fraude história e científica, é uma impossibilidade material determinar quem são os devedores e os credores dessa pretensa dívida. Mesmo aceitando a hipótese algo simplista de que, no período colonial, os escravizadores eram todos brancos, ela não permite concluir que um negro brasileiro de hoje seja necessariamente descendente direto de escravos, nem que um branco seja necessariamente descendente de escravizadores. Esse seria um erro intelectual primário, que consiste em tomar alguns traços morfológicos superficiais (cor da pele, cor e textura do cabelo, cor dos olhos, formato do nariz, espessura dos lábios etc.) como prova de herança genética. Trata-se, em suma, de uma confusão elementar entre fenótipo e genótipo.

A cor da pele, por exemplo, determinada pela quantidade e tipo de pigmento de melanina na derme, resulta de apenas quatro ou seis genes num universo de 25 mil genes estimados no genoma humano. É perfeitamente possível, por exemplo, que um brasileiro contemporâneo com a pele escura tenha, de resto, ascendência genética mais europeia que africana. Assim como é igualmente possível que uma pessoa de pele clara tenha antepassados (bisavós, tataravós etc.) africanos.

Isto deveria ser óbvio, mas não o é para os nossos jornalistas: afrodescendente (leia-se, descendente de escravos africanos) não é sinônimo de “negro”; eurodescendente (descendente de escravizadores europeus) não é sinônimo de “branco”. Fazer essa associação reducionista é imaginar que, do século 16 até hoje, cada uma dessas “raças” só se reproduziu entre si, endogenamente. É, em suma, ignorar séculos e séculos de miscigenação. Eis o tipo de papinha ideológica acadêmica que nutriu jornalistas-militantes da estirpe de Flávia Oliveira.

Porque a mestiçagem brasileira não é um mito, ou um “discurso ideológico para legitimar desigualdades”, como gostam de dizer dez entre dez marxistas. Ela é uma realidade. As mais recentes pesquisas sobre a composição genética da população brasileira confirmaram amplamente a sociologia de Gilberto Freyre.

Em 2002, a mais conhecida daquelas pesquisas foi publicada no livro Homo brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos socioantropológicos da formação do povo brasileiro, organizado por Sergio Danilo Pena, renomado geneticista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os dados ali reunidos confirmam a presença, em nossa população, de uma notável mistura de genes originados dos três grandes grupos humanos protagonistas daquilo que o antropólogo Roberto DaMatta chamou de “fábula das três raças”, o mito fundador da nossa identidade: os colonizadores europeus, os povos indígenas autóctones e os africanos para cá trazidos ao longo de mais de três séculos de tráfico de escravos.

Um dado interessante daquele estudo revela que, dos 90 milhões de brasileiros autoclassificados “brancos” no senso do IBGE, aproximadamente um terço tem maior frequência de genes de origem africana, sendo, portanto, na acepção literal da palavra, afrodescendentes.

Não se reduz o racismo na sociedade a toque de caixa, com base em canetadas de burocratas e ideologia barata, mas com inteligência e constância. E, sobretudo, com menos lacração racialista

Em contrapartida, uma pesquisa correlata encomendada pela BBC Brasil no âmbito do projeto Raízes afro-brasileiras, e também coordenada por Sergio Pena, chegou a um resultado interessantíssimo, a saber: o conhecido sambista Neguinho da Beija-Flor, cujo fenótipo é indubitavelmente negro, a ponto de haver inspirado o seu nome artístico, tem mais genes europeus (67,1%) do que africanos (31,5%). Ou seja: em termos de origem genética, Neguinho da Beija-Flor é mais eurodescendente que afrodescendente, tendo, entre os seus antepassados, mais escravizadores europeus que escravos africanos.

Não se espera, é claro, que o sambista mude o nome para “Branquinho da Beija-Flor” porque, nunca é demais repetir, fenótipo e genótipo não devem ser confundidos. Ainda assim, resta a pergunta óbvia: o Neguinho da Beija-Flor recebe ou paga a dívida histórica da escravidão? E os brancos que, segundo a outra pesquisa, têm maior ascendência africana? Não seriam credores da dívida história da escravidão?

Essas perguntas servem para revelar a insanidade que consiste em se buscar reparações históricas com base na morfologia da população, e o quão nocivas podem ser as consequências sociais desse discurso, que termina por incitar um clima de revanchismo e divisão entre pretensos algozes e vítimas históricos. Nunca nada de bom saiu desse tipo de iniciativa que, nos casos mais extremos, resulta em guerra civil e genocídio. Foi o que se passou em Ruanda, por exemplo, como eu mostro neste outro artigo, do qual destaco um trecho: “Um crime daquela magnitude jamais teria sido possível sem que uma perversa ideologia de vingança e reparação histórica (como a que infectou parte da intelligentsia brasileira no que diz respeito às relações raciais) houvesse preparado os espíritos para cometê-lo. E essa ideologia não seria tão sedutora não fosse calcada em verdades históricas parciais e, sobretudo, em meias-verdades”.

Que grande parte da classe falante brasileira insista nessa ideologia fraudulenta, burra e perigosa é mais uma comprovação do quão corrompida se tornou a inteligência nacional, refém de sentimentalismos piegas e soluções fáceis para problemas complexos. Não se reduz o racismo na sociedade a toque de caixa, com base em canetadas de burocratas e ideologia barata, mas com inteligência e constância. E, sobretudo, com menos lacração racialista – que intoxica todas as relações sociais – e mais informação.

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