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“E na manhã orvalhada da existência
Os contágios fatais são mais constantes”.
– Shakespeare (Hamlet, Cena 1, Ato 3)

Um bebê humano é um amontoado de sensações (tédio, fome, dor, calor, frio) que não sabe elaborar racionalmente e exprimir com clareza. Das sensações, ele parte direto, sem intermediários, para a forma mais crua de comunicação, a única de que dispõe: o choro, o chamado da deusa-mãe, até que o Verbo se faça leite. Num bebê, não existe nada entre as paixões e as suas ações (ou reações). O bebê é as suas paixões.

Amadurecer, como se sabe, é ir preenchendo aquele intervalo com o uso cada vez mais disciplinado da razão e do intelecto. Vamos aprendendo a, primeiro, conceitualizar (ou autocomunicar) e, depois, a expressar com clareza o que sentimos. O adulto já não pode saltar diretamente das paixões à ação. No meio do caminho precisa inteligir. Quanto mais pessoas estiverem no campo de influência de sua agência, mais inteligência e mediação serão necessárias entre o estímulo inicial e a ação final.

Aquela regra aplica-se fundamentalmente, portanto, ao domínio da política. Como Aristóteles formulou há mais de dois mil anos, o homem é, por sua própria natureza, um “animal político” (Zoon politikon). Com o termo, o filósofo referia-se à habilidade humana de raciocinar e se comunicar com vistas à obtenção de soluções justas e adequadas para os problemas comuns da sociedade política. Por sua vez, Platão escrevera que a pólis (ou seja, a sociedade civil e política) “é o homem em letras maiúsculas” (A República, 368 d-e; 435 e). Segundo esse “princípio antropológico”, como o chamou Eric Voegelin, uma sociedade justa e bem-ordenada decorreria de almas individuais justas e bem-ordenadas.

Quando formulou aquela ideia, Platão estava desapontado com sua pólis, Atenas, cuja administração vinha sendo amplamente conduzida pelos sofistas, homens cujas almas o filósofo considerava espúrias e desonestas. Mas, em lugar de se recolher a algum tipo de Torre de Marfim imune à vida real, Platão decidiu confrontar seus oponentes e, trilhando as pegadas de Sócrates, desvelar a ignorância e a vilania que ocultavam sob máscaras sociais pretensamente virtuosas (qualquer semelhança com o moralismo político contemporâneo não é mera coincidência).

Imbuído daquele espírito, Platão fundou a sua Academia, reunindo em torno de si pequenos círculos de discípulos engajados no processo de recuperar a integridade de suas almas em face de uma sociedade decadente e corrompida. Somente após esse processo primordial de autoeducação (que custava tempo e sacrifício pessoal), estariam preparados para assumir as responsabilidades intrínsecas à arte de bem governar.

Nos tempos de Platão e Aristóteles, a política era uma atividade destinada essencialmente aos homens maduros. Ainda hoje, em muitas sociedades tradicionais, é só muito gradativamente que os mais jovens vão ingressando na política, de início escutando mais do que falando, e assimilando dos mais velhos a tradição e a experiência requeridas para lidar com atividade tão complexa, que exige muito mais do que boas intenções e desejo de justiça.

O protagonismo dos jovens na política é fenômeno relativamente recente e praticamente restrito à história moderna do Ocidente. Não cabe aqui recontar essa história, senão apenas destacar que o desprezo modernista pela tradição e pelo passado – manifesto tanto nas artes quanto na política, como vimos no artigo da semana passada –, e o consequente entusiasmo com o novo, a vanguarda, o futuro, se fez acompanhar de uma ascensão dos jovens aos papéis de destaque na trama da história. Sob o ponto de vista de seu próprio tempo biográfico, Nélson Rodrigues sintetizou essa transformação numa de suas memoráveis crônicas:

“Ah, no antigo Brasil era uma humilhação ser jovem. Só me lembro de uma meia dúzia de rapazes. Os rapazes escondiam-se, andavam rente às paredes e, para eles, a velhice era uma utopia fascinante. Por toda parte, havia uma paisagem de velhos em flor. A palavra do velho parecia soar numa acústica de catedral (…) E tudo mudou. Agora o importante, o patético, o sublime é ser jovem. Ninguém quer ser velho. Há uma vergonha da velhice. E o ancião procura a convivência das Novas Gerações como se isso fosse um rejuvenescimento. Outro dia, dizia-me uma jovem senhora: ‘Tenho mais medo da velhice do que da morte’. Quer ser defunta e não quer ser velha”.

Os jovens trouxeram para a vida pública a impetuosidade, a inexperiência orgulhosa, a impaciência insegura, o desejo de escapar do tédio existencial e um senso de justiça que, embora potencialmente nobre, é quase sempre cru e mal direcionado, culminando numa pulsão justiceira muito mais arbitrária que propriamente justa. Não há melhor símbolo do espírito modernista do que a resposta dada pelo jovem arquiteto suíço Charles-Édouard Jeanneret a Auguste Perret, considerado então o pai da moderna arquitetura francesa, quando este lhe perguntou se já havia ido ver o palácio de Versalhes. “Não, nunca irei” – foi a resposta do jovem que viria mais tarde a ser mundialmente conhecido pelo nome Le Corbusier. “Porque Versalhes e a época clássica não são senão decadência”. A húbris modernista é consubstancial à arrogância da juventude.

O jovem é naturalmente rebelde, claro. Mas seu espírito quase nunca se rebela contra a própria geração e os próprios pares. Ao contrário da vulgata romântica que retrata os jovens como criaturas independentes e ansiosas por autonomia, a verdade é que tendem a ser demasiado gregários e carentes de aceitação alheia. Mostram-se, por isso mesmo, mais suscetíveis aos apelos de ideologias e projetos coletivistas.

Como sói acontecer em todo movimento de caráter revolucionário, os jovens – cujo senso de inadiabilidade e de tédio está naturalmente à flor da pele – são sempre mais propensos à ação, à execução prática do conhecimento e dos hábitos mentais adquiridos dos ideólogos de preferência. Não por acaso, quase toda revolução tem nos jovens sua principal força motriz, ainda que, normalmente, sejam homens mais velhos que os incitem e comandem. Quem quer que tenha lido os romances de Dostoievski, e em especial Os Demônios, sabe que esse espírito juvenil foi o combustível para as revoluções, sublevações e os atentados terroristas ocorridos na Rússia na virada do século 19 para o 20.

Os jovens quase nunca criam movimentos de massa, mas os amplificam de maneira notável. Nenhum ideólogo pode abrir mão desse potencial. Dmitry Pisarev, teórico revolucionário russo do século 19, e um dos gurus de Lenin, já constatara que “os maiores fanáticos são as crianças e os jovens”. Nos dizeres de Che Guevara, os jovens são a “argila maleável com que se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores”. E não custa lembrar, por fim, que o século 20 testemunhou o surgimento dos movimentos da juventude politicamente organizada, a começar pelo pioneiro deles todos: o fascismo.

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