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O presidente Jair Bolsonaro dá posse ao novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, em cerimônia no Palácio do Planalto. Valter Campanato/Agência Brasil
O presidente Jair Bolsonaro dá posse ao novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, em cerimônia no Palácio do Planalto. Valter Campanato/Agência Brasil| Foto:

“A pedagogia, como é hoje considerada, está desligada do saber, pretende substituí-lo e ocupar o seu lugar” (Alain Besançon, prefácio de A Escola dos Bárbaros, de Isabelle Stal e Françoise Thom)

Na canção Nostradamus, o músico Eduardo Dusek brinca com a figura de um eu-lírico alienado diante do Apocalipse. Tendo acordado tarde, “de bode”, e visto edifícios explodindo e pessoas correndo, o sujeito ignora o drama e lhes dirige um habitual “Bom dia”. Indo até a cozinha e quase tropeçando no cadáver da cozinheira Carlota, ainda assim lhe implora, aos gritos: “Levanta, me serve um café, que o mundo acabou”. Anteontem (08/04), ao ouvir na Jovem Pan os comentários de Vera Magalhães sobre a mudança no MEC, tive a sensação de topar com o personagem da canção materializado na minha frente.

Ao criticar a breve e conturbada gestão de Ricardo Vélez Rodríguez, Vera ressaltou a importância da pasta, afirmando que a educação não é uma área em que se possa “brincar de parquinho ideológico”, expressão que costuma usar em referência a nomes sugeridos (ou de algum modo influenciados) pelo filósofo Olavo de Carvalho, a quem, portanto, atribui a pecha de brincalhão. Sobre o novo ministro Abraham Weintraub, a comentarista exprimiu a preocupação com a continuidade dessa abordagem ideológica, que prioriza a guerra cultural contra a esquerda. Pinço, a seguir, alguns trechos de seu comentário:

“O que o MEC precisa é de uma gestão baseada em dados e evidências [e repetiu a dupla de palavras outras duas vezes], não de ideologia, não de discussão sobre o que é marxismo cultural, sobre o que a esquerda fez nas universidades, como combater a esquerda nas universidades. Eu acho que esses unicórnios, pode deixar para discussão do Twitter, no Facebook… Porque tem muita coisa concreta para ser tratada no MEC. Tem provas que precisam ser feitas. Tem gráfica para ser contratada. Tem livro didático para ser licitado. É coisa do dia a dia, é a preocupação que vai fazer com que o gestor sente na mesa e tenha milhões de coisas para despachar. Não dá para perder tempo com esse tipo de discussão diáfana…”

Num segundo momento, em reforço à fala inicial, acrescentou: “Eu acho que a gente corre, sim, o sério risco de continuar nessa contenda meramente ideológica, quando tem essas tarefas de natureza estatística, administrativa, gerencial, muito urgentes… É por isso que a ideologia é nefasta quando ela é o cerne de um governo, seja de esquerda ou de direita. Quando a única coisa que pauta as ações é a viseira ideológica, e a tentativa de sobrepujar o outro com base em argumentos que não são nada científicos, não são amparados por dados da realidade, são quimeras ideológicas, a gente tem o que está tendo agora: pura ideologia”.

Contemplando a expressão facial com que a jornalista concluiu seu raciocínio (o cenho franzido, a pose severa de adulta ciosa dos dados científicos passando um pito na molecada bagunceira do parquinho ideológico), alguém mais suscetível talvez tenha se impressionado. Quem, ao contrário, conhece a real dimensão da calamidade educacional brasileira certamente notou o aspecto cômico da cena. Pois, no estado presente de nossa educação, menosprezar inteiramente o embate ideológico em prol de um fetichismo de “dados”, “evidências”, “estatísticas” e “administração” é fazer como o cidadão londrino que, sob intenso bombardeio nazista na Segunda Guerra, julgasse tolice perder tempo com as baterias antiaéreas, quando o que realmente importava era a gestão eficiente dos parques e jardins.

Embora Vera Magalhães desconheça-lhe a origem, sua visão de uma administração puramente técnica e supraideológica é, ela mesma, ideológica de cabo a rabo. Como mostrei em artigo anterior, trata-se de um resíduo ideológico do positivismo, movimento intelectual de massa que, como sugere o filósofo Eric Voegelin, consiste na submissão da compreensão teórica da realidade ao método das ciências naturais, uma tentativa forçada de dotar as ciências humanas de “objetividade” mediante a exclusão metodológica dos assim chamados “juízos de valor”. Daí que Vera recite qual uma fórmula de autoencantamento um vocabulário tecnicista e pretensamente pragmático, vendo em coisas como o preenchimento de uma planilha de dados uma atividade muito mais nobre do que, por exemplo, uma discussão (“diáfana”) sobre os pressupostos filosóficos ora dominantes na educação nacional.

O vício mental positivista faz com que todo problema social (ou seja, de ordem coletiva) seja concebido como um acidente natural, cuja solução requer nada mais que um planejamento adequado e uma execução técnica meticulosa. Nesse sentido, os problemas educacionais são vistos como algo que simplesmente acontecem, tal como simplesmente acontece a erupção de um vulcão. Ocorre que eles não são nada disso. São problemas criados por uma sucessão de atos de vontade humana, e que, portanto, só podem ser equacionados de maneira eminentemente política, ou seja, pela interposição de outros atos de vontade. A abordagem não tem como ser meramente técnica, no sentido de uma vontade humana agindo sobre um objeto inerte, porque o que temos aí são ações de pessoas sobre outras pessoas, não de pessoas sobre a natureza. A ênfase positivista no método das ciências naturais desnatura e deforma artificialmente os objetos com os quais lidam as ciências humanas e sociais.

Ora, todos sabem dos problemas gerenciais urgentes e rotineiros a serem resolvidos na educação nacional, coisas como contratação de gráfica, compra de material escolar, manutenção de escolas, admissão de professores, entre outros. Mas a função de um ministro da pasta não se reduz a essa administração burocrática do abacaxi, que ele deve delegar (aí, sim) a técnicos competentes. Ao condutor da nossa política educacional, cabe também dar um passo atrás, e, escorado no projeto político eleitoralmente vitorioso, repensar o próprio conceito de educação que o país deseja adotar, uma escolha valorativa que, em última instância, determinará o rumo e o sentido das práticas gerenciais mais rotineiras, em si mesmas destituídas de sentido cultural. Em vez de se restringir ao domínio do como fazer, um ministro da educação deve estar atentando também ao para que fazer. Um tal recuo é especialmente necessário numa situação em que a educação foi sequestrada por forças políticas que veem nela apenas um meio de construção do “novo homem”.

Nos últimos 50 ou 60 anos, a educação brasileira tornou-se um dos alvos principais da ofensiva da esquerda contracultural, com seu projeto de crítica e desconstrução (não mais de transmissão) do legado cultural e científico da civilização ocidental. À famosa convocação do marxista húngaro György Lukács – “Quem nos livrará da civilização ocidental?” –, pedagogos e educadores brasileiros responderam entusiasticamente. Logo, antes de se falar em gestão tecnicamente eficiente, é preciso saber para que ela deve ser eficiente, pois eficiência técnica não é um valor em si mesmo, dependendo, para a sua justa avaliação, do fim ao qual se destina. Da perspectiva do condenado, um carrasco eficiente não é, decerto, algo muito alvissareiro. E eu não duvido que haja no Brasil muitos ideólogos de educação demonstrando grande eficiência técnica na missão de “nos livrar da civilização ocidental”.

Ao estilo alienado de Vera Magalhães, há muita gente dizendo coisas como: “Se os alunos sequer aprendem matemática, o ministro tem de ser pragmático, e não pode perder tempo com guerrinha ideológica”. Trata-se aí de uma curiosa dissociação entre causa e efeito, atrelada à expectativa irreal de solucionar o segundo sem lidar com a primeira. Porque uma das causas evidentes por que os alunos no Brasil não aprendem matemática é o fato de muitos dos nossos especialistas em educação acharem que ensinar matemática não é o papel primordial da escola. Ou seja, a “guerrinha ideológica” já teve início faz tempo. Empinar o nariz e fazer pose de pragmático com nojinho de ideologia não fará com que ela desapareça magicamente do horizonte.

Se o leitor acha que exagero, chamo a atenção para uma tese de doutorado aprovada na Faculdade de Educação da USP, cujo resumo transcrevo: “Nossa investigação é uma pesquisa teórica de cunho histórico-filosófico-educacional, que tem como objetivo principal discutir as contribuições de Paulo Freire e Ubiratan D’Ambrosio para a formação do professor de matemática no Brasil. A dialética e as técnicas de análise de conteúdo constituem a metodologia adotada. Desse modo, nos impusemos como tarefa analisar a formação do professor de matemática de modo contextualizado com a nossa realidade social atual e reconstituindo a função histórica que a nossa escola e a formação docente desempenharam como reforçadoras das desigualdades sociais e mantenedoras do status quo da sociedade capitalista… Nesse sentido, os construtos teóricos de Freire e D’Ambrosio mostram-se como indicadores de encaminhamentos possíveis no processo de formação de um professor de matemática crítico/libertador e, por isso, consciente de sua tarefa como agente ativo na formação de um educando não especialista em matemática, mas inserido em sua realidade social como um sujeito transformador e em transformação, que encontra na matemática uma ferramenta para o processo dialético de sua própria construção. Assim, a investigação indica a necessidade de uma atuação dos formadores no sentido de conscientizar os futuros professores de matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da construção da hegemonia dos excluídos, dos explorados em geral. Ou seja, a investigação aponta a necessidade de a formação inicial se constituir como um antidiscurso ao discurso ideológico da classe dominante” (grifos meus).

Compreende-se por que, na penúltima edição do Pisa, em 2015 (os resultados da última edição só saem ao final deste ano), os estudantes brasileiros tenham ficado na 66.ª posição em matemática, num ranking de 70 países. Enquanto os inocentes pais esperam que seus filhos aprendam, entre outras coisas, a fórmula de Báskara, um acadêmico da principal universidade do país, responsável pela formação de professores, está mais interessado em usar o ensino de matemática como meio de derrotar o capitalismo. Gostaria de ouvir a sugestão de Vera Magalhães sobre como lidar com um tal “unicórnio” sem ter de se sujar na terra do “parquinho ideológico”. Com dados, evidências, estatísticas? Com gráficas, livros didáticos, provas? Com o ministro autocastrado, despachando em silêncio no gabinete, a cara enfiada em orçamentos e gráficos?

Há quem se queixe da ênfase no embate cultural com o argumento (pretensamente pragmático e realista) de que as escolas se tornaram focos de violência infanto-juvenil, e de que, portanto, toda preocupação com ideologia ou guerra cultural não passa de futilidade nesse contexto. Também aí há uma dissociação entre o efeito e uma de suas causas, pois se ignora que, longe de acidental, a violência dentro das escolas também conta com uma fundamentação político-ideológica, como a que encontramos, por exemplo, na dissertação de mestrado de uma educadora e professora titular da Unicamp, depois publicada em livro.

Baseando-se fundamentalmente no pensamento de Michel Foucault – e encarando a escola como uma instituição repressiva, tais como as prisões e os manicômios –, a referida autora caracteriza a depredação escolar como forma legítima de contestação a um sistema perverso dedicado a “vigiar e punir”. Segundo ela, as escolas erram ao adotar um juízo maniqueísta, distinguindo entre bons (os que não depredam) e maus alunos (os depredadores). Em suas palavras, que cito textualmente: “Esse procedimento impedia que a depredação resultasse em formas mais amplas de manifestação e que os alunos radicalizassem suas críticas à escola, pois eles mesmos acabavam associando depredação com ‘marginalidade’, e muitos até se culpavam por suas reações, não percebendo que a violência primeira partia da própria escola” (grifos meus).

E então? Será que Vera sabe lidar com essa “quimera”? É permitido ao ministro enfrentar pessoas com esse tipo de ideia, tentar afastá-las de posições de poder dentro do sistema educacional, ou isso também será considerado mais uma travessura da turma do “parquinho ideológico”? De que modo resolver a questão se toda reação a tais manifestações de radicalismo ideológico de extrema-esquerda é vista como ato de radicalismo simétrico e inverso, como se a mera decisão de lutar numa guerra cultural em andamento igualasse as partes beligerantes; como se, por exemplo, aliados e nazistas pudessem ser historicamente equiparados pelo fato de que ambos pegaram em armas? O que pode a proficiência gerencial diante de um tal problema, que não comporta soluções meramente técnicas, senão necessariamente políticas?

Além do mau desempenho dos nossos alunos e da violência escolar, muitos reclamam também da falta de quadras esportivas nas escolas, ausência que prejudica a prática da educação física. Aparentemente, eis mais um problema de ordem prática, inteiramente alheio a disputas ideológicas. Mas até na educação física, uma certa orientação ideológica surge como causa profunda do problema. Basta lembrar que, por exemplo, muitas escolas adotam o livro Educação Física Progressista, de Paulo Ghiraldelli Jr., um nome referência em filosofia da educação desde os anos 1980, como ele próprio se gaba.

Com o pomposo subtítulo “A Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos e a Educação Física Brasileira”, e recheado de vulgata marxista da primeira à última página, o livro trata a competição esportiva como reflexo da ideologia capitalista, que busca justificar a dominação burguesa sobre os proletários. Seguem alguns trechos: “Você já pensou como seria jogar com todos os colegas, sem excluir aqueles que não tiveram a mesma oportunidade de praticar uma modalidade? É realmente necessário jogar contra o seu colega? Não seria interessante que você jogasse com ele, respeitando as limitações e possibilidades de cada um?… O esporte sofre uma influência muito grande do sistema capitalista, o qual o utiliza como forma de exploração e dominação das massas, com o intuito de impor ideias, tanto políticas quanto filosóficas, sobre os modos de produção e principalmente de consumo. Nesse sentido, a televisão é um instrumento de alienação utilizado pelas classes econômicas dominantes”.

Quando o leitor se perguntar por que, ao contrário do que se passa em países como os EUA, nossas escolas e universidades não formam atletas de ponta, não busque a resposta apenas em problemas de natureza administrativa ou financeira. Saiba que, subjacente a isso, há ideólogos influentes caracterizando a competição esportiva como uma forma de opressão. E, mais uma vez, eis o tipo de situação que não comporta uma solução meramente gerencial.

Não há nada de “diáfano” na assim chamada guerra cultural. Que seus efeitos sejam menos imediatos e menos perceptíveis a inteligências intoxicadas de “pragmatismo” positivista – que se imaginam com os pés firmes na realidade, quando, na verdade, só tangenciam a sua superfície – não significa que sejam menos reais. Não há nada de fortuito na simples noção de que a educação nacional deve estar voltada à formação intelectual e científica dos estudantes, de que a escola deve servir à correta transmissão do corpo de conhecimentos acumulado pelas gerações passadas, e de que os alunos precisam assimilar o conteúdo das diversas disciplinas. Pensar assim já é fazer uma escolha ideológica e defender um valor, porque, nas últimas décadas, essa tradição foi ferozmente desacreditada por ideólogos da pedagogia crítica e revolucionária, com efeitos muito palpáveis sobre o desempenho de nossos alunos.

Melhorar a educação brasileira passa hoje, necessariamente, pelo enfrentamento àquela vertente, um embate que gira em torno de valores. O paradigma contracultural foi devastador para aqueles que, por natureza, ainda não tinham formação cultural alguma para ser criticada. Despejado em estômagos culturalmente vazios, o ácido da crítica provocou úlceras gravíssimas na inteligência dos estudantes brasileiros. Não há como remediar a situação sem travar a guerra cultural e sem a substituição de pessoal. É preciso que o chefe da pasta da Educação conduza com firmeza a mudança de orientação ideológica, ainda que alguns prefiram que ele se ocupe apenas da logística de distribuição de giz, apagadores e quadros negros, sem se importar com o fato de que também esses itens podem ser usados contra, e não a favor, dos estudantes.

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