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Ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York.
Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, filósofos chegaram a dizer que os verdadeiros culpados eram os Estados Unidos.| Foto: Henny Ray Abrams/AFP

“Quem nos salva da civilização ocidental?” (György Lukács, A Teoria do Romance)

“Mundo ocidental, estais condenado à morte. Somos aqueles que derrotarão a Europa... Deixe que o Oriente, vosso terror, finalmente responda a vosso apelo” (Louis Aragon, A Revolução Surrealista)

“O dever de se arrepender impede o bloco ocidental, eternamente culpado, de julgar ou combater outros sistemas, outros Estados, outras religiões. Nossos crimes passados nos obrigam a calar a boca. Nosso único direito é o silêncio... Evidentemente, não se pode treinar gerações inteiras para a prática do autoflagelo sem pagar um preço por isso” (Pascal Bruckner, A Tirana da Penitência)

No artigo anterior, escrevi que as reações da classe falante ocidental aos ataques terroristas têm servido “como mais um combustível para aquele ódio, preparando o terreno para o próximo atentado”. Transcorrida apenas uma semana entre aquele artigo (que abordava a decapitação de um professor de História em Paris) e o de hoje, cidadãos da Europa voltaram a ser caçados nas ruas por extremistas islâmicos, alguns dos quais docemente acolhidos em território europeu graças à irresponsável política de “portas abertas” defendida por burocratas da União Europeia e por governantes como Angela Merkel.

Em Nice (cidade que, há quatro anos, já havia sofrido com um violento atentado terrorista), três pessoas foram esfaqueadas até a morte dentro da Basílica Notre-Dame, entre elas uma cidadã brasileira de 44 anos, mãe de três filhos. Em Viena, 22 pessoas ficaram gravemente feridas e quatro morreram alvejadas por disparos realizados por um terrorista do Estado Islâmico em vários pontos da cidade, inclusive nas cercanias de uma sinagoga. E queira Deus que novos ataques não ocorram de hoje até o próximo artigo.

Como sugeri naquele artigo, ao atribuir a culpa de seus atos abomináveis às ações dos “infiéis”, os terroristas sabem muito bem com quem falam. Estão cientes de encontrar ouvidos sensíveis a essa mensagem que justifica a violência via autovitimização. Grupos como o Estado Islâmico, a Al-Qaeda e o Hamas são mestres na arte de explorar a “culpa coletiva” ocidental, pois, afinal de contas, a ideia de lançar o fardo de todos os males do mundo sobre as costas do Ocidente (e, atualmente, nos EUA em particular) não é novidade. Ao contrário, trata-se de mensagem constantemente vocalizada por um sem-número de bem pensantes “progressistas” na América e na Europa.

Grupos como o Estado Islâmico, a Al-Qaeda e o Hamas são mestres na arte de explorar a “culpa coletiva” ocidental

Basta lembrar dos atentados de 11 de setembro. À época, o ultraesquerdista Noam Chomsky, um dos intelectuais públicos mais influentes do mundo, qualificou os EUA de “Estado terrorista”. A tese de Chomsky era a seguinte: os ataques terroristas representavam uma resposta dos povos oprimidos do Terceiro Mundo aos séculos de exploração e expansionismo norte-americano. Os EUA, antes que vítimas, eram os verdadeiros responsáveis pelos atentados. Soa familiar, não?

A posição de Chomsky foi corroborada por outros intelectuais, e amplificada dentro e fora do universo acadêmico. De acordo com essa tese, os terroristas da Al-Qaeda haviam sido irremediavelmente atraídos para o campo magnético do World Trade Center (símbolo do poderio econômico norte-americano), não tendo outra alternativa que não a de se explodir contra milhares de inocentes. Os terroristas estariam expressando um instinto de liberdade, pulsão demasiado humana que, sob condições de opressão, tende a se mostrar exasperada e, eventualmente, violenta. Já os EUA, o país agredido, sendo inexorável e aprioristicamente culpados no tribunal da história, deveriam absorver o golpe com humildade e resignação. Como notou o analista político Frédéric Encel, tudo se passa “como se os trabalhadores no World Trade Center e os passageiros dos aviões sequestrados encarnassem o mal da América, tendo de expiar a culpa pelo culto do rei dólar, o destino dos apaches, o McDonald’s”.

A mensagem era clara, ainda que odiosa quando dita com todas as letras: os EUA pediram aquilo. Enquanto a maior parte da intelligentsia ocidental evitou dizer o que pensava de maneira assim tão direta, houve intelectuais que não se fizeram de rogados. O filósofo Jean Baudrillard, por exemplo, escreveu: “Olhando de perto, pode-se dizer que eles o fizeram, mas nós o desejamos... Quando o poder global monopoliza a situação a este nível, quando há tamanha condensação de todas as funções na maquinaria tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, que outro caminho há senão uma guinada situacional terrorista? Foi o próprio sistema que criou as condições objetivas para essa brutal retaliação”.

No Brasil, não é de surpreender a presença de intelectuais de esquerda defendendo abertamente a lógica do terror como meio político aceitável. Recorde-se, por exemplo, de um artigo de Vladimir Safatle, intitulado significativamente “Invenção do terror que emancipa”, no qual o professor da USP, resenhando uma coletânea organizada por Slavoj Zizek (outro entusiasta da violência redentora), descreve terroristas de uma maneira assaz peculiar: “sujeitos não substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa”. O cerne do argumento é que o rótulo terrorismo deriva, na verdade, de um juízo moralista e reacionário sobre práticas revolucionárias inerentes à história política moderna.

Por ocasião do 11 de setembro, em artigo publicado no Correio Braziliense, Safatle já seguira mais ou menos a linha de Baudrillard: “Verdade seja dita: a terça-feira negra mostrou como a ação política mais adequada para a nossa época é o terrorismo. Ele é o que resta quando reduzimos a dimensão do conflito social à lógica do espetáculo”.

Nota-se que esses intelectuais são unânimes em tratar o terrorismo como reação, ou retaliação, a uma agressão anterior. Antes que ação motivada política e ideologicamente, o terrorismo seria equivalente à agressividade reativa de uma fera acuada. Sendo os EUA ou o Ocidente os “verdadeiros” agentes do terrorismo, análises como as de Chomsky, Baudrillard e Safatle acabam por equiparar os terroristas e as vítimas, ambos passivamente sujeitos à atuação de um ator histórico que, de fora e acima, os determina igualmente. Diante do algoz abstrato e categorial, as vítimas concretas (os mortos pelo terror) e os agressores concretos (os terroristas do Estado Islâmico, por exemplo) são todos, de direito, igualados na condição de pacientes históricos. Diante do “fato” primeiro da opressão, o terrorismo torna-se praticamente um imperativo categórico – ou, nas palavras de Safatle, “a ação política mais adequada para a nossa época”.

No Brasil, não é de surpreender a presença de intelectuais de esquerda defendendo abertamente a lógica do terror como meio político aceitável

Ocorre que o terrorismo não precisa de razões, mas apenas de pretextos. Como explica o filósofo político Barry Cooper: “O terror, em especial, não é um meio de enfrentar uma oposição, mas de criá-la… Tem de haver um cálculo, uma justificação, para toda a matança, uma narrativa que crie inimigos ‘objetivos’ cuja existência e subsequente extinção mantenha o aparato homicida em movimento. Esse cálculo e essa justificação é o que [Hannah]Arendt chama de ‘ideologia’”.

Pode-se dizer que, em se tratando de compreender o terrorismo, a razão da intelligentsia tem sempre certa desvantagem em comparação com a do senso comum, pois, diferente desta, se vê impedida (graças ao paradigma positivista que esteve na origem da constituição das ciências humanas em disciplinas acadêmicas) de fazer uso de uma distinção moral absoluta entre bem e mal. Cito Cooper mais uma vez: “Para a maioria dos americanos comuns, e, de fato, para a maioria dos seres humanos, os atentados de 11 de setembro foram uma lembrança da diferença entre o bem e o mal. Com efeito, no contexto do progressismo pós-moderno, eles foram uma forçosa lembrança de que essa diferença existe. Os eventos daquele dia não estavam e não estão completamente abertos a interpretações e julgamentos, não foram e não são completamente relativos ou simples matéria de opinião. Quando o presidente Bush se referiu aos terroristas como ‘praticantes do mal’ (evil-doers), isso não era apenas uma cartada retórica, mas uma descrição correta do que, em árabe, poder-se-ia traduzir diretamente como mufsidoon. Ao mesmo tempo, entretanto, é insuficiente para a ciência política expressar apenas choque e raiva. A indignação de um cidadão e a demanda por justiça ou retaliação é perfeitamente inteligível: a maioria das pessoas sabe quem são os caras maus, e por que eles são maus. É tão autoevidente quanto poderia ser que os terroristas eram e permanecem sendo fanáticos religiosos e assassinos. É daí que todos, cidadãos e cientistas políticos, devem partir”.

A posição de Cooper é minoritária entre intelectuais. Normalmente, quando convidados por veículos de imprensa a falar sobre terrorismo, os bem-pensantes procuram contrariar – alguns até corrigir – a percepção espontânea do senso comum sobre o fenômeno. Dessa decisão resultam os muitos malabarismos retóricos e analíticos como os de Chomsky, Baudrillard e Safatle. Para esses autores, a hipótese de que terroristas sejam pura e simplesmente maus é considerada simplista.

Desprezando, por assim dizer, esta moralidade maniqueísta do senso comum, os intelectuais acabam, todavia, reforçando a ideologia subjacente ao terror, ao procurar uma causa supostamente mais objetiva que a simples maldade. Para Chomsky, Baudrillard, Safatle e muitos outros intelectuais no Ocidente, os terroristas possuem, de fato e de direito, um inimigo objetivo: a sociedade capitalista ocidental. Nisso, parecem estar de pleno acordo com os fundamentalistas islâmicos. Contra uma lógica “simplista” e “preto-no-branco”, fazem análises que, sem dúvida mais complexas e sofisticadas, acabam sendo, todavia, menos realistas. Eis um bom exemplo de quando a complexidade funciona como abrigo da ideologia. “A ideologia busca explicar o sentido oculto dos eventos, um sentido nunca acessível ao senso comum... Para o ideólogo, as coisas nunca são o que parecem”.

Ideólogos islâmicos são a prova viva disso. Os terroristas tentam convencer a opinião pública de que aquilo que se passa à vista de todos é, na verdade, uma espécie de ilusão de ótica. Mesmo estando com a faca e o pescoço das vítimas nas mãos, os assassinos não são eles – como todos poderiam estar imaginando –, mas EUA, Israel, o Ocidente. Os terroristas dizem a sério aquilo que Groucho Marx disse brincando: “Afinal, vocês vão acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?”.

Mahathir Mohamad, ex-premiê da Malásia, tuitou logo após o atentado em Nice: “Os muçulmanos têm o direito de ficar com raiva e matar milhões de franceses pelos massacres do passado”. É lamentável constatar que, com a contribuição de ideólogos de esquerda como Chomsky, Baudrillard e Safatle, uma parcela da opinião pública ocidental tenha optado por acreditar na palavra dos agressores em detrimento do que veem os próprios olhos, num masoquismo civilizacional que termina por consagrar esse sádico direito à reparação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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