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O Tratamento Ludovico no Futebol Brasileiro: como o politicamente correto está matando o esporte
| Foto: Alexandre Vidal e Marcelo Cortes/Flamengo

Ninguém está obrigado a participar da crise espiritual de uma sociedade. Ao contrário, todos estão obrigados a evitar a loucura e viver sua vida em ordem. (Eric Voegelin, Ciência, Política e Gnosticismo)

Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer ‘nós’ com um tom de segurança, invocar os 'outros' e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. (Emil Cioran, Genealogia do Fanatismo)

Foi em 1989 que, levado por meu avô e um primo mais velho, entrei no Maracanã pela primeira vez para ver ao vivo um jogo do Flamengo, que então sofria as dores do outono da era Zico. Tinha eu 9 anos de idade, e os meus iniciadores na nobre arte da arquibancada tomaram uma decisão que, por medo da violência, dificilmente alguém na mesma posição tomaria nos dias de hoje: que minha estreia como arquibaldo se desse logo num clássico. No caso, contra o Vasco da Gama, o nosso principal rival, que conta com a segunda maior torcida do Rio.

Afora a lembrança da emoção de ver o Zico ao vivo e em cores, pouco recordo da partida, que, se não me engano, terminou num empate de 1 a 1. O que me marcou especificamente naquele dia aconteceu ao fim do jogo, quando as duas grandes torcidas, deixando as arquibancadas cada qual a partir do seu setor, encontraram-se na rampa de saída do estádio.

Depois de haver assaltado o carnaval com a sua suscetibilidade patológica, os luminares do politicamente correto decidiram bombardear o outro grande pilar da cultura popular nacional: o futebol

Ao contrário do que talvez se esperasse para os dias de hoje, não houve ali uma pancadaria generalizada. Antes que alguém me acuse de nostálgico, todavia, esclareço não se tratar aqui de qualquer idealização do passado, como se aquele fora um período de paz e amor no futebol nacional. Já havia, sim, episódios de violência e hostilidade, e é claro que, na referida situação, os torcedores de Flamengo e Vasco não se deram as mãos e começaram a cantar Imagine, do John Lennon.

Mas se, naquele momento, as duas torcidas não partiram para uma guerra de aniquilação, nem tampouco celebraram uma paz impossível, o que fizeram, afinal de contas? Reproduziram em escala microscópica aquilo que toda cultura saudável trata de fazer: ritualizaram a hostilidade mútua sob a forma de cantos de provocação e xingamento, abrindo um canal por onde a violência potencial pudesse fluir de maneira simbólica, sem atualizar-se sob a forma de violência física.

A rivalidade futebolística ritualizada expressa-se necessariamente por estereótipos. Quase como num sistema totêmico, as torcidas encarnam esses estereótipos históricos, usualmente atribuídos por adversários, mas muitas vezes incorporados pelos próprios torcedores do time à sua identidade (o Flamengo, por exemplo, transformou em mascote – o urubu – aquilo que, na origem, surgiu como provocação estereotipada dos adversários, em alusão à grande quantidade de torcedores negros e pobres em suas fileiras). Na gramática popular do futebol carioca, por exemplo, a torcida do Flamengo é estigmatizada como “favelada”; a do Fluminense, como aristocrática (donde o simbolismo da homossexualidade, mais como sinônimo de janotismo ou frescura, do que literalmente de pederastia); a do Botafogo, como sofredora e fatalista, e assim por diante.

Todo torcedor comum sabe manejar perfeitamente aqueles estereótipos, compreendendo o seu espírito jocoso e o seu sentido figurado. Quando, por exemplo, um torcedor rival chama o do Fluminense de “gay” ou “viado”, evidentemente não está aludindo à sua orientação sexual. Quando chama o do Flamengo de “favelado” ou “bandido”, decerto não imagina que todos os 40 milhões de torcedores rubro-negros morem em favelas ou pratiquem crimes. Quando chama o do Botafogo de “chorão”, não crê, realmente, que ele passe a vida chorando, senão apenas alguns momentos...

Mas eis que, depois de haver assaltado o carnaval com a sua suscetibilidade patológica, os luminares do politicamente correto – acadêmicos, jornalistas, juristas e burocratas progressistas – decidiram bombardear o outro grande pilar da cultura popular nacional: justamente, o futebol. E com que voracidade o fizeram! Contrariando todo bom senso, e num misto de sinalização de virtude e histeria, resolveram proibir a jocosidade e a provocação no esporte, entretendo o projeto assustador, pois inerentemente totalitário, de controlar integralmente o comportamento do torcedor, bloqueando toda possibilidade de “ofensa”. Nem Burgess nem Orwell conceberiam cenário tão distópico.

Só nas últimas semanas, tivemos alguns vislumbres dessa distopia instituída pela mentalidade psicótica dos politicamente corretos. Vimos, por exemplo, o Flamengo ameaçado de punição porque a sua torcida entoou “gritos homofóbicos” no clássico contra o Fluminense no Maracanã, comportamento que teria violado um artigo do Código Brasileiro de Justiça Desportiva. No confronto entre São Paulo e Corinthians, no Morumbi, o árbitro teve a petulância de interromper o jogo por conta de “grito homofóbico” da torcida (algo que, aliás, já ocorrera no ano passado). Já no Mineirão, o sujeito que se fantasia de mascote do Atlético Mineiro, o “Galo Doido”, foi tratado como monstro desumano pela terrível iniciativa – que alguns jornalistas qualificaram de “bárbara” – de pedir para uma jogadora feminina do clube dar uma voltinha, exibindo a sua beleza.

A ausência progressiva de mecanismos de ritualização da hostilidade latente entre torcedores rivais faz com que essa violência recalcada exploda em manifestações físicas

É claro que, no Maracanã e no Morumbi, não houve nem sinal de homofobia. E é claro que, no Mineirão, não houve assédio sexual algum contra a atleta. O que houve, no primeiro caso, foi uma provocação jocosa entre torcidas, baseada, como já disse, em estereótipos tradicionais do universo futebolístico. Nada a ver com o que se depreende do sentido da palavra homofobia – ou seja, ódio a homossexuais. E, no segundo caso, o que houve foi uma tentativa de galanteio, algo que, para a maioria das mulheres adultas e bem resolvidas, é motivo de lisonja, não de raiva ou ressentimento. Nada a ver com misoginia, portanto.

Isto precisa ser dito com todas as letras: o fato de que a grande maioria dos jornalistas contemporâneos, cuja personalidade foi intoxicada por décadas de desconstrucionismo e sociologia crítica dentro das universidades, já não saiba diferenciar entre provocação e ódio, galanteio e agressão, não deveria impedir as inteligências saudáveis de afirmar e reafirmar o óbvio. Nesse sentido, foi lamentável a atitude covarde da diretoria do clube Atlético Mineiro, que, preferindo acreditar mais no palavrório histérico do que nos seus próprios olhos, resolveu aderir ao linchamento moral do seu funcionário, tudo para aplacar a fúria bestial dos inquisidores politicamente corretos. Tudo, em suma, o que país algum deveria permitir: que as perversões intelectuais de uma minoria arrogante e ruidosa contaminem o tecido social inteiro.

É claro também que, bem ao contrário de reduzir a violência no futebol, esse maquinário distópico de controle, espécie de Tratamento Ludovico de alcance coletivo, tem criado as condições para o seu recrudescimento. A ausência progressiva de mecanismos de ritualização da hostilidade latente entre torcedores rivais (tal como o que presenciei em minha estreia no Maracanã) faz com que essa violência recalcada exploda em manifestações físicas, afastando dos estádios e do seu entorno os torcedores comuns, que, castrados em suas manifestações espontâneas de jocosidade, cedem todo o terreno àqueles que, sem jocosidade alguma, anseiam pela violência em estado bruto e literal. Não é à toa, aliás, que, embora os instrumentos de controle comportamental dos torcedores tenham se aprimorado, a violência entre torcidas só tenha aumentado nos últimos anos.

Curiosamente, quem mais costuma lamentar a ocorrência de jogos que, por questões de segurança, são realizados com torcida única são os mesmos jornalistas esportivos que – a exemplo de André Rizek, do SporTV – tanto militam para impor à cultura futebolística nacional essa assepsia moralista do politicamente correto. Não percebem os incautos que, com sua pulsão controladora à la Minority Report, contribuem para o aumento da violência que alegam condenar. E isso porque, minando o espaço social da jocosidade, os politicamente corretos destroem também uma de suas funções sociais primordiais, que a literatura antropológica já cansou de registrar em todas as culturas humanas, a saber: a de controlar e dirimir o conflito. Mas disso falaremos no artigo da semana que vem.

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