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O presidente francês François Mitterrand (à esquerda), e o primeiro-ministro espanhol Felipe González (à direita), em foto de maio de 1992.
O presidente francês François Mitterrand (à esquerda), e o primeiro-ministro espanhol Felipe González (à direita), em foto de maio de 1992.| Foto: Ángel Martín/EFE

No fim do artigo anterior, comentamos sobre a diplomacia soviética dos anos 1980-90, focada basicamente na missão de desfazer a tradicional “imagem do inimigo” que dela formara o Ocidente. Nesse contexto, foi nessa época também que, para alavancar o projeto da Perestroika, Gorbachev começou a reunir-se com lideranças socialistas de toda a Europa Ocidental, apresentando-lhes a ideia de uma unificação europeia, proposta que, pari passu, vinha sendo discutida em outros ciclos políticos e intelectuais no Ocidente.

O lema interno adotado por Gorbachev para se referir ao processo era “abraçar para sufocar”. Uma coisa, portanto, era a linguagem de bastidores usada com os camaradas. Outra, bem diversa, era a retórica com que o líder soviético esculpia sua persona internacional – sempre pacifista, humanista e tolerante. Foi nas conversas com os socialistas europeus que começou a desenvolver também a famosa ideia de “Casa Comum Europeia” – um slogan no qual insiste até hoje.

Um ótimo registro das reuniões de Gorbachev com os socialistas europeus encontra-se no livro EUSSR: the Soviet Roots of European Integration, do dissidente soviético Vladimir Bukovsky, cujo título faz trocadilho com as siglas em inglês da União Europeia (EU) e da União Soviética (USSR). Dentre outras coisas, Bukovsky conta que, em 26 de outubro de 1990, na cidade de Madri, Gorbachev fez uma visita ao então secretário-geral do Partido Socialista Operário Espanhol, Felipe González Márquez – empossado à época como primeiro-ministro do reino da Espanha (o terceiro desde a redemocratização). No encontro, González Márquez explicou ao camarada soviético suas sofisticadas concepções sobre o destino do socialismo contemporâneo.

Para alavancar o projeto da Perestroika, Gorbachev começou a reunir-se com lideranças socialistas de toda a Europa Ocidental, apresentando-lhes a ideia de uma unificação europeia

Em maio do ano anterior, o ministro espanhol de Relações Exteriores, Francisco Fernández Ordóñez, já se havia encontrado com Gorbachev em Moscou, e lhe dito que “o sucesso da Perestroika significava o sucesso da revolução socialista nas condições contemporâneas” e que, portanto, “o sucesso das ideias do socialismo na comunidade mundial contemporânea depende do sucesso da Perestroika”.

Já no encontro em Madri, as palavras dirigidas por Felipe González a Gorbachev foram as seguintes:

“Hoje, a essência da Revolução, que ocorre no mundo, é o movimento da Comunidade Mundial Unida. Devo dizer que análises ideológicas e políticas confusas como as que fizemos por muitos anos – e, em alguma medida, pelas quais somos todos responsáveis – fizeram um fetiche da oposição entre capitalismo e socialismo (...) Hoje, chego a uma conclusão assaz estranha. Desde que chegamos ao poder, tenho lutado com meus camaradas de partido para fazê-los entender que a economia de mercado é o melhor instrumento para alcançarmos os nossos principais objetivos”.

Nessa época, já havia também uma avaliação geral entre os membros da Nomenklatura soviética de que, ao contrário do que Gorbachev escrevia ou falava em público, o regime chegara a um impasse, uma crise estrutural que afetava especialmente as searas da economia e da tecnologia. É como se os líderes soviéticos tivessem chegado à conclusão de que a “base econômica” (para usar o vocabulário marxista clássico) tornara-se estreita para suas ambições globais, e que, a partir de então, seria preciso recorrer ao grande potencial do “inimigo de classe” nesse terreno.

Após complexos debates e negociações, as lideranças soviéticas e os socialistas europeus chegaram à conclusão de que, se o processo de integração da Europa (e talvez do mundo) era inevitável, fazia-se necessária a criação de uma frente ampla de esquerda (incluindo comunistas, socialistas, anarquistas e socialdemocratas) para exercer controle sobre o processo. Foi nesse contexto que, em 26 de novembro de 1988, o presidente francês François Mitterrand encontrou-se a portas fechadas com Gorbachev em Moscou.

Os globalistas do Ocidente descobriram que a centralização comunista de poder e o capitalismo de compadrio praticado na URSS eram o melhor meio para a conquista de monopólio

Entre baforadas de cigarro e talagadas de vodca, os camaradas conversaram sobre as possibilidades de convergência entre as perspectivas ocidental e soviética sobre integração. Mitterrand enxergou na ideia de “Casa Comum Europeia” algo próximo de suas próprias concepções de um pan-europeísmo. O presidente francês defendia os laços entre a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e o Conselho de Assistência Econômica Mútua (Comecom). Se a URSS prometia acrescentar um “rosto humano” ao seu socialismo, por que a Europa não poderia adicionar um pouco de socialismo ao seu velho humanismo? Disse Mitterrand a Gorbachev:

“Parece-me que, em se tratando de direitos individuais, a prática existente nos países ocidentais parece mais perfeita do que a respectiva prática na União Soviética. Por outro lado, no que concerne aos direitos coletivos, especialmente nos países desenvolvidos industrializados, o Ocidente como um todo provavelmente terá de se esforçar muito nessa direção. Refiro-me ao direito ao trabalho, e assim por diante.”

Estabelecia-se ali uma espécie de pacto tácito entre a Nomenklatura soviética e a social-democracia europeia em torno da proposta de uma convergência para um mundo pós-Guerra Fria. Pode-se dizer que, se as lideranças soviéticas concluíam que o comunismo precisava do know-how tecnocientífico e econômico do Ocidente, a elite globalista ocidental, por sua vez, fascinara-se com a “tecnologia” de controle político-social, bem como de homogeneização das consciências, desenvolvida pelos soviéticos.

Concluiu-se comumente, portanto, pela necessidade de uma síntese entre o dinamismo econômico do capitalismo liberal e a expertise comunista de controle social e imposição de consenso público. Se, como disse González a Gorbachev, os comunistas haviam percebido que a economia de mercado era o melhor meio para avançar a causa socialista, os globalistas do Ocidente descobriram que a centralização comunista de poder e o capitalismo de compadrio praticado na URSS eram o melhor meio para a conquista de monopólio. Na semana que vem, abordaremos a questão na parte final desta série.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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