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Aliados que brigaram com Bolsonaro em 2020
Bolsonaro ao lado de Sergio Moro: de aliados a “inimigos”.| Foto: Gazeta do Povo/Arquivo

Conforme fui envelhecendo, meu entendimento de que heróis são uma exclusividade do universo da ficção foi ficando cada vez mais claro. Quando somos crianças, aqueles personagens cheios de superpoderes nos maravilham e nos enchem de sonhos. Vejo isso diariamente em meus filhos, que acordam sempre na pele de um herói diferente. Hoje de manhã, por exemplo, as primeiras palavras da Eleanor ao acordar foram “papai, eu sou Owlette!”, e ela seguiu como tal durante todo o trajeto para a creche (no Brasil, Owlette é a Corujita do desenho PJ Masks).

Muito tempo atrás, quando eu era um pré-adolescente, Super-Homem e Homem-Aranha eram meus favoritos. Anos mais tarde, na época da faculdade, minhas compras de quadrinhos se resumiam ao universo dos X-Men e ao Spawn. Munido de um melhor entendimento das idiossincrasias da personalidade humana, aqueles heróis me pareciam agora mais compatíveis com a vida real, pois, embora tivessem poderes extraordinários, seu caráter e suas motivações eram humanamente ordinários. Ainda assim, quando confrontados com situações de extrema importância, eram capazes de buscar força em princípios de honra que fazem parte de um código tácito de conduta comum a todos os superpoderosos, sejam eles da Marvel ou da DC, da Terra ou de fora dela.

O brasileiro já elegeu tantos heróis nos últimos 200 anos que seria possível compor uma Liga da Justiça inteira, mas que está mais para Liga da Injustiça ou Liga dos Corruptos

Já a busca por heróis na vida real é sempre ingrata. A história humana é repleta de exemplos de povos ou nações que acreditaram em heróis e se arrependeram amargamente. Com raríssimas exceções, os libertadores e salvadores trouxeram grandes benefícios a uma parte ínfima daqueles que os colocaram no poder. Em geral, essa parte ínfima se compõe de familiares, amigos íntimos e parceiros políticos. E, embora as democracias modernas tenham criado mecanismos e instituições com o objetivo de limitar a distribuição seletiva de vantagens e benefícios, a massa genérica que costumamos chamar de “povo” anseia por um herói como alguém perdido no Saara anseia por água. E o povo brasileiro não foge à regra, muito pelo contrário.

Infelizmente, para decepção geral dos que acreditam em heróis, eles não existem na política. Lula já perdeu a aura faz tempo. Bolsonaro não precisou nem de meio mandato para perder a sua. E agora, com a divulgação de um novo lote de mensagens entre o pai da Lava Jato e Deltan Dallagnol, a de Moro foi para o vinagre. Afinal, a relação que o então juiz tinha com os procuradores passa longe, muito longe, do que se espera de um profissional ético e que se pauta pelos princípios republicanos.

Obviamente, lulistas, bolsonaristas, moristas, lavajatistas, doristas e outros adoradores de políticos da atualidade não darão o braço a torcer. Lulistas, agora mais do que nunca, usarão as mensagens divulgadas como pretexto para alegar que Lula sempre foi inocente e só foi preso porque se tornou alvo pessoal de um juiz malvado e vingativo. Bolsonaristas varrerão para debaixo do tapete a ficha corrida de Arthur Lira e dirão que seu presidente finalmente poderá governar, pois o terrível Rodrigo Maia não mais o sabotará no Legislativo, e de quebra ostentarão a sabedoria do mestre, que se livrou do ex-ministro da Justiça porque joga um xadrez 4D como ninguém. Moristas continuarão firmes com seu herói, alegando que o Brasil exige que se quebre leis, ritos e códigos de vez em quando, para que a coisa certa seja feita. Lavajatistas farão o mesmo, mas rezando em dois altares, um com a pequena estátua do Moro e o outro com os nomes dos procuradores do MPF. Doristas só conseguem falar em vacina, e continuarão a ignorar que seu amado não tem nenhum apreço pela democracia e pelos direitos individuais, especialmente quando algum deles se coloca como obstáculo ao seu projeto de poder. Cada uma das tribos tem sua própria versão de “os fins justificam os meios”.

O brasileiro já elegeu tantos heróis nos últimos 200 anos que seria possível compor uma Liga da Justiça inteira. É claro que, com base nos resultados das ações dessa turma toda, estaria mais para Liga da Injustiça ou Liga dos Corruptos. Mas o brasileiro não liga. Ele age como amante desprezado, sempre acreditando que o próximo relacionamento vai dar certo. O casamento com a democracia não atrai o nosso povo. Bom mesmo é se aventurar com a paixão do momento, que enche o coração de esperanças pueris e embota a razão. Lula se foi, Bolsonaro logo será história, Dória e Moro talvez nem cheguem lá. Uma coisa, no entanto, é certa: o próximo herói já está na fila, e os brasileiros correrão para elegê-lo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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