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O presidente Jair Bolsonaro acena para multidão que se manifestava a favor de seu governo no Palácio da Alvorada
Bolsonaro se despede de multidão após participar de uma manifestação a favor de seu governo no Palácio da Alvorada| Foto: Reprodução/Facebook

Tenho visto um comportamento bastante comum nos bolsonaristas que ainda se dão ao trabalho de comentar meus textos e tuítes: a indignação por conta de minha oposição ao governo Bolsonaro. Muitos deles me conhecem por causa do meu segundo livro, e acham inconcebível que eu não apóie o “primeiro presidente armamentista desde muitas décadas”.

Há um problema muito sério com a base cognitiva desse tipo de raciocínio: uma pessoa jamais pode ser entendida em seu todo por causa de uma posição qualquer sobre um tema específico. Jair Bolsonaro expressa um posicionamento compatível com o meu nos temas “armamento civil” e “aborto”? Sim. Isso é o suficiente para que eu considere Jair Bolsonaro uma boa pessoa ou um bom presidente? De forma alguma. Está aí o PCO - Partido da Causa Operária - para provar que nem todo armamentista possui sensatez.

Infelizmente, o binarismo adotado por boa parte da sociedade brasileira no tocante à política e seus temas de discussão só reforça essa ideia de que fulano é gente boa porque concorda comigo sobre isso ou aquilo. Na cabeça do militante, que é um binarista por natureza, os pontos de alinhamento do ídolo político com suas convicções funcionam como sua métrica de caráter, uma que é obviamente muito distante da realidade. “Como você pode ser a favor da vida e ao mesmo tempo criticar Bolsonaro?” e “Como um armamentista consegue se juntar a desarmamentistas na oposição ao governo?” são perguntas comumente formuladas pelos militantes, para os quais o simples ato de oposição iguala as pessoas acima de qualquer outro valor. Eis uma representação de sua lógica:

Se A é contra o armamento e A faz oposição a Bolsonaro e B também faz oposição a Bolsonaro, então B deve ser contra o armamento, mesmo que sua posição pública sobre o tema seja a favor.

Se A defende o aborto e A faz oposição a Bolsonaro e B também faz oposição a Bolsonaro, então B deve ser a favor do aborto, mesmo que tenha se pronunciado de forma contrária sempre que indagado(a) a respeito.

E dessa lógica surgem também as representações contrárias, como essa abaixo, bastante comum nas últimas semanas:

Se A é a favor do armamento e A já foi condenado por crimes de corrupção e A apoia o governo Bolsonaro, então A deve ser considerado um criminoso redimido.

Fica claro que não há nada de lógico na “lógica" militante. Ela não merece sequer ser chamada de falso silogismo, de tão infantil que é.

Dito tudo isso, quero falar mais um pouco sobre armamento civil, já que o tema está passando com certa frequência pelos portais de notícias e redes sociais devido ao conteúdo da reunião ministerial do dia 22 de abril, recentemente divulgada por ordem do Ministro Celso de Mello.

Para os bolsonaristas, o mito continua mito porque quer armar a população contra possíveis tiranos que venham ameaçar as liberdades e direitos dos cidadãos brasileiros. Para os críticos, especialmente os de esquerda, o presidente fala em armar a população na mesma retórica de Chavez, ou seja, armar sua própria milícia para depois efetuar um golpe autoritário.

A pergunta que ninguém fez e que ninguém parece disposto a discutir é: a intenção de Bolsonaro muda as virtudes do armamento civil?

Para mim, a resposta é não.

Desde que o direito ao armamento seja estabelecido sem que haja viés ou discricionariedade, não vejo como ele poderia se aproveitar disso para armar uma milícia própria sem que, ao mesmo tempo, uma quantidade ainda maior de cidadãos “não milicianos” também viesse a se armar. Portanto, não será porque Bolsonaro é a favor de armar cidadãos obedientes à lei que eu passarei a ser contra.

Assim como não deixei de ser contra o aborto porque Bolsonaro usa isso como pilar de sustentação religiosa de seu governo. Novamente, não me importa se ele se diz contrário ao aborto porque acredita nisso ou porque lhe garante um nicho eleitoral importante. Eu não posso mudar minhas convicções e princípios só porque alguém que acho despreparado, ignorante e mau caráter possui dois ou três pontos em comum comigo.

O ponto crucial para mim nessa discussão é que não abandonemos as causas certas só porque alguém que consideramos um pária também as defende.

Vejamos o que aconteceu com a causa feminista, a título de ilustração. Só porque a esquerda adotou uma postura beligerante, que chega a pregar a eliminação total dos homens em suas vertentes mais radicais, a direita não deveria jamais ter deixado de olhar para as mulheres e reconhecer as injustiças reais que ainda existem na sociedade moderna. Mulheres ainda sofrem de violência doméstica, por exemplo, mas dificilmente encontramos alguém da direita - ou pelo menos do que se estabeleceu como direita no Brasil - para falar em seu favor. A pauta foi esquecida sob o pretexto de “não dar espaço para a agenda da esquerda”.

A questão do armamento civil deve ser tomada, sim, como princípio básico da liberdade do ser humano. E a opinião de Jair Bolsonaro a respeito do tema não deveria influenciar a nossa, posto que ter a mesma opinião que alguém sobre um tema específico não faz de você, de forma alguma, defensor ou apoiador dessa pessoa.

Assim, se você já era contrário ao armamento civil e manteve sua posição fundamentada, tudo certo. A despeito de nossa discordância sobre o tema, você se manteve íntegro em seus princípios. No entanto, se você crê, como eu, que o cidadão obediente à lei tem o direito de se defender e de defender sua família sem precisar contar com a força armada do Estado, que quase sempre chega tarde demais, passar a fazer coro com desarmamentistas nesse momento é um sintoma de fraqueza moral e incapacidade de manter princípios quando em uma situação de crise.

No exato momento em que um governo contrário ao armamento civil assumir o poder e você trocar de lado novamente, sua reputação já terá sido manchada para sempre. Afinal, quem troca de opinião conforme o momento são geralmente aqueles que ocupam assentos nos executivos e legislativos deste país, e que estão preocupados somente com os votos da próxima eleição.

Não existe “sequestro de causa”. Se você acredita que os fins não justificam os meios, não pode acreditar que uma causa se torna indefensável só porque foi adotada por alguém ruim. Assim como dois erros não fazem um acerto, dois acertos não fazem um erro. Mesmo que sejam dois acertos de um Bolsonaro ou de um Lula da vida.

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