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Superintendência da Receita Federal, em Brasília: queda na arrecadação de tributos em meio à pandemia tem impacto nas contas públicas.
| Foto: Pixabay

A semana começou com um tema em alta: impostos. No Brasil, o governo entrega um conjunto de propostas de reforma tributária ao Congresso ainda hoje; nos Estados Unidos, o vazamento da declaração de imposto de renda de Donald Trump tem feito muita gente passar vergonha, tamanho o nível de desconhecimento dos comentaristas brasileiros.

Comecemos com a reforma tributária brasileira. Defensores e aliados do governo já começam a mostrar qual será a narrativa para justificar a criação de um novo imposto sobre movimentações financeiras, semelhante àquela alíquota demoníaca que existiu no Brasil entre 1997 e 2007, a CPMF. Basicamente, o que essa turma já começou a dizer é que o governo está fazendo uma reforma ampla, que envolve a criação de alguns tributos e a eliminação de outros, e que não podemos criticar uma parte dela enquanto a reforma toda não estiver pronta, pois o resultado final pode ser uma redução geral na carga tributária.

Quem já era adulto na época em que tivemos CPMF sabe do que estou falando: esse é um tipo maligno de imposto que incide em cascata e onera toda a cadeia produtiva. É o tipo de coisa que não se deve fazer em hipótese alguma. Usar um imposto sobre movimentação financeira para reformar o código tributário é como usar vigas de papelão para reformar uma casa. É impossível dar certo. “Ah, mas vale a pena se a contrapartida for desonerar a folha de pagamento”, dirá a turma da chapa-branca. Não, não vale. Assim como você não toma um remédio cujos prováveis efeitos colaterais são piores que a doença em tratamento, você não substitui um sistema horroroso de tributos por um tributo suficientemente horroroso por si só.

E é justamente a monstruosidade do sistema tributário brasileiro que prega peças nos ditos analistas que estão certos de terem entendido as questões sobre a declaração de imposto de renda de Donald Trump. O que se lê hoje nos portais de notícias e nos perfis de redes sociais da grande maioria dos jornalistas brasileiros é uma leitura míope da situação. Aliás, não só míope; astigmata também, pois resulta da mistura "submissão ao trio CNN, New York Times e Washington Post" e “incapacidade de entender uma realidade tributária diametralmente oposta à brasileira”. Meu objetivo, neste texto, é entender a situação de um ponto de vista neutro e embasado em fatos e leis conhecidas.

A reportagem do NY Times começa dizendo que o advogado das Organizações Trump, Alan Garten, respondeu a uma carta enviada pelo jornal (a qual continha um resumo do que foi levantado) com a seguinte afirmação: “a maioria, senão a totalidade, dos fatos parecem estar incorretos”. Diz também que Garten pediu para ver os documentos que basearam a reportagem, para emitir uma resposta mais contextualizada, pedido que foi negado pelo NYT sob a justificativa de proteger suas fontes.

Ora, aqui surge o primeiro problema: o NYT não mostra uma linha sequer dos documentos a que teve acesso. A reportagem segue apenas descrevendo partes isoladas de tais documentos, como pedaços desconexos de um quebra-cabeças. E o faz com um objetivo claro: tentar passar a ideia de que as manobras contábeis usadas pelas Organizações Trump para diminuir a quantidade de impostos a pagar são ilegais e imorais.

Qual seria a verdade mais provável, já que não temos acesso aos documentos? Trump fez o que os empresários fazem todos os dias, seja no Brasil ou nos Estados Unidos: usar o código tributário a seu favor para pagar a menor quantidade de impostos possível. Ninguém em sã consciência trabalha com o intuito de pagar mais impostos. Grandes empresas brasileiras possuem departamentos gigantes de planejamento tributário, com equipes que buscam maneiras de reduzir a carga de impostos, nem que para isso seja preciso desmontar equipamentos e importá-los em partes, já que as alíquotas variam de acordo com o setor industrial, com o tipo de tipo de equipamento e com dezenas de outros parâmetros. Ele sempre praticou a elisão fiscal. Elisão é lícito e, no meu ponto de vista, saudável - afinal, quanto menos dinheiro nas mãos do Estado, melhor. Evasão é crime, e até onde a reportagem no NYT revela, não houve evasão fiscal.

Aqui vale a pena analisar alguns aspectos do código tributário americano e fazer algumas comparações com o código brasileiro. Em primeiro lugar, há um dispositivo no código americano que faz toda a diferença na saúde financeira das empresas, principalmente no caso de novos empreendimentos: todo prejuízo pode ser usado para compensar lucros no cálculo de imposto a pagar. Assim, uma empresa que é criada hoje, a não ser que tenha um sucesso meteórico, operará por dois ou três anos (algumas vezes até por mais tempo) sem nenhum lucro. Pelo contrário, acumulará prejuízo devido aos custos de entrada no mercado, setup inicial de operação, investimentos em marketing para posicionar um novo nome ou marca, reformas de ponto etc. Nos Estados Unidos, todo esse prejuízo precisa ser compensado por um lucro equivalente antes que a empresa pague seu primeiro centavo de imposto sobre lucro. Muitíssimo diferente do Brasil, onde a grande maioria das empresas paga imposto sobre faturamento, ou seja, paga no lucro e também no prejuízo. Essa regra explica, portanto, o fato das Organizações Trump não terem pago imposto por dez anos, já que a falência de seu complexo de hotéis e cassinos em Atlantic City foi financeiramente devastadora.

Outro ponto importante são os impostos sobre folha de pagamento. Ainda que substancialmente menos, o empregador americano também paga impostos toda vez que deposita o salário de um funcionário. Uma parte dos impostos custeia o Social Security, equivalente no INSS brasileiro, e outra parte custeia o Medicare, plano de saúde público para cidadãos de 65 ou mais anos de idade. Há ainda uma porcentagem paga para o sistema de seguro-desemprego, geralmente com uma contribuição federal e uma estadual. Quando se diz que Trump não pagou impostos, ou que pagou $750 de impostos apenas, isso significa que ele não pagou imposto sobre lucro. Suas empresas, no entanto, pagaram milhões de dólares em outros tipos de impostos, como o próprio Alan Garten afirmou.

Há sim dois pontos que atingem Trump em cheio quando se confronta a reportagem do NYT com suas falas passadas: a hipocrisia ao acusar adversários de pagarem pouco imposto, quando ele mesmo não pagava nada, e a imagem de super-empresário-mega-bem-sucedido. Sobre o primeiro ponto, não há muito o que comentar. Diz o ditado popular que o peixe morre pela boca. Quem fala muito se expõe muito, e Trump fala demais, tuíta demais, se gaba demais. Sobre o segundo ponto, há um fato muito relevante e que precisa ser considerado: nos Estados Unidos, não se consegue inferir a riqueza de uma pessoa por suas declarações de imposto de renda, já que não há a seção de bens e direitos, como no caso brasileiro. Sendo assim, é impossível calcular o nível de riqueza de Trump, o quanto “ele vale”, nesse momento. Somente ele mesmo pode esclarecer essas questões, liberando outros documentos fiscais e contábeis para escrutínio público.

Em resumo, Trump tem um baita problema pela frente. Se insistir em manter suas declarações em sigilo, dará poder à narrativa do NYT e da grande imprensa americana, gerando desconfiança no eleitorado indeciso ou independente. A menos de 40 dias das eleições, é uma decisão extremamente delicada. Afinal, só ele e meia dúzia de advogados e contadores sabe se a liberação de mais informações trará algum benefício à sua imagem ou não. Uma coisa é certa: o NYT está preparado para soltar essa matéria a conta-gotas, pedacinho por pedacinho, de agora até o dia da eleição.

Já no Brasil, saberemos de todos os detalhes sobre a proposta de reforma tributária em questão de horas. Dependendo do que vier por aí, terei material para mais uma coluna inteira. Esperemos pelo pior. Esse tem sido nosso normal nas últimas décadas.

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