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Um dos mais premiados diretores de teatro do Brasil, Roberto Alvim conta em entrevista que todas as portas se fecharam depois que ele declarou apoio a Jair Bolsonaro
Um dos mais premiados diretores de teatro do Brasil, Roberto Alvim contou em entrevista que todas as portas se fecharam depois que ele declarou apoio a Jair Bolsonaro| Foto: Edson Kumasaka/ Divulgação

“Promover o renascimento do teatro brasileiro é nossa missão agora, e isso só pode ser feito com os meios materiais e estruturais fornecidos pelo governo”, disse o novo diretor do Centro de Artes Cênicas (Ceacen) da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Roberto Alvim, em entrevista. Não sei se somente com os meios materiais e estruturais fornecidos pelo governo é possível promover esse renascimento agora, mas sei porque assim parece ser.

Para me fazer entender, precisamos retornar à época em que a configuração material do Estado brasileiro começou a ser criada, com Getúlio Vargas. O movimento de aumento e centralização do poder estatal já vinha de antes, mas é com Getúlio que ganha a forma mantida até hoje e aumentada (e muito) depois dele, especialmente durante o regime militar. Na área da cultura, embora somente em 1985 viéssemos a ter um ministério autônomo sobre isso, desde a década de 1930 esses meios e estruturas foram sendo criados pelo Estado, primeiro com a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública.

Quando falamos em criação de ministérios, estamos falando, materialmente e para começo de conversa, de locação ou construção de prédios públicos, da necessidade de dinheiro para equipá-los e para contratação de servidores. Da década de 1930 em diante essa estrutura só fez aumentar em todos os setores e na área cultural não foi diferente, como a criação da Funarte pelo governo militar, em 1975, comprova. Hoje, a fundação administra (para ficar apenas na estrutura material voltada ao teatro) em torno de 11 espaços culturais espalhados pelo país.

Hoje é inconcebível imaginar que poderia ser feito cinema, teatro etc. sem participação estatal em alguma medida, quando não dono de tudo

Sim, você leu direito, os ministérios da Educação e da Saúde eram o mesmo, algo inconcebível nos dias de hoje, não é? Menos pela importância dessas áreas, que exigiriam ministério próprio, mas pelo tamanho da estrutura criada pelo Estado desde então para sua atuação, que, aos poucos, tornou-o não apenas um dos atores nesses setores, mas o seu autor, o “dono” de ambas, que faz com que a participação do que não seja estatal seja mais admitida, concedida, sempre seguindo suas diretrizes, do que propriamente incentivada. E aqui começa o problema.

Daí para a dependência do Estado não falta muito, como acontece hoje com vários ramos da cultura. Sem incentivos fiscais e imunidades tributárias, dificilmente teríamos cinema nacional ou até mesmo mercado editorial, por exemplo, pois neste caso, além de livros não serem tributados, o Estado é o seu maior comprador (em 2018, 28% das compras de livros foi feita pelo Estado). Se isso não lhe parece um problema, pelo contrário, compreendo perfeitamente, pois há muito está consolidado em nosso imaginário que primeiro viria a atuação e responsabilidade (e suposto direito) do Estado, com tudo mais lhe sendo complementar. Mas com isso a chamada iniciativa privada, ainda que não sufocada, transformou-se em algo sem iniciativa de verdade, salvo quando incentivada pelo Estado. Por isso hoje é inconcebível imaginar que poderia ser feito cinema, teatro etc. sem participação estatal em alguma medida, quando não dono de tudo.

Se o leitor quiser entender melhor essa mentalidade, recomendo começar pela leitura do best-seller de Bruno Garschagen Pare de acreditar no governo – por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado, que de maneira didática e bem humorada passeia pela nossa história e demonstra como o governo de Getúlio não consolidou apenas uma estrutura burocrática, mas também uma base cultural a lhe servir de sustento, cooptando intelectuais, jornalistas e artistas, o que, a partir dali, estabeleceu uma proximidade entre cultura e política cujas consequências nefastas sentimos hoje, mais do que nunca.

Para entender mais a fundo esse processo, recomendo também a leitura de uma obra indispensável para tanto, lançada há poucas semanas: Capanema, uma biografia, primeira obra do jornalista doutor Fábio Silvestre Cardoso. Se o leitor não ligou o sobrenome à pessoa, saiba que Gustavo Capanema foi não apenas o mais importante ministro da Educação que já tivemos, o que mais tempo ficou até hoje à frente do ministério, na época de Vargas, mas também o principal responsável pelo início e consolidação dessa “estatização” da cultura.

No livro, fica claro não só que Capanema foi um muito bem sucedido político brasileiro, no sentido de saber como conquistar e conservar o poder, mas também um brilhante “gestor de intelectuais e artistas”, sem o que dificilmente conseguiria o que conseguiu. Sua relação próxima com figuras fundamentais para nossa cultura, sabendo administrar diferenças ideológicas e mantendo uma razoável liberdade de pensamento e de expressão para figuras como Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete durante anos e fiel defensor até o fim da vida, foi decisiva para a criação e consolidação de uma estrutura estatal que aos poucos foi “engolindo” a produção cultural do país, seja direta ou indiretamente.

Para tanto, soube aproveitar muito bem a típica situação existencial de intelectuais e artistas em geral, ainda mais num país pobre e inculto como o nosso. Eis um trecho do livro: “Em um país que não tinha estrutura adequada para empregar os homens de letras, qual era a saída para os intelectuais? Ou a imprensa ou o funcionalismo público. É uma geração de funcionários públicos. Graças a essa tradição, é um lugar seguro, ainda hoje, para os intelectuais trabalharem, de modo que isso se estabeleceu como um caminho natural para os homens de letras no país. De igual modo, como o Estado brasileiro ainda exerce influência marcante na vida nacional, para os intelectuais, o caminho da estabilidade parece ser não apenas o mais confortável, mas o único que se torna legítimo de atuação no Brasil”.

A chamada iniciativa privada, ainda que não sufocada, transformou-se em algo sem iniciativa de verdade, salvo quando incentivada pelo Estado

A própria ida de Roberto Alvim ao governo decorre disso, aliás. Foi procurado pelo próprio presidente da República, em virtude da alegada perseguição que o diretor sofreria do meio teatral (contaminado endemicamente pelo progressismo intolerante), dando-lhe uma solução às suas dificuldades econômicas e um poder que jamais teve para atuar no meio teatral e cênico em geral. Que tire bom proveito à arte que tanto ama, mas será impossível desvincular o resultado, seja qual for, do projeto político do governo atual, assim como é impossível desvincular o progressismo desvairado do meio teatral que o expurgou do esquerdismo governante nas últimas duas décadas.

Porque este é o legado inescapável desta estatização cultural, apesar de seus possíveis bons frutos e intenções: tudo se politiza. E qual o risco dessa politização da vida intelectual, artística? Deixo a resposta com o próprio Drummond, que em 1941 escreveu um texto muito significativo sobre seu trabalho ao lado de Gustavo Capanema, intitulado Experiência de um intelectual no poder, em que disse: "O intelectual é, por natureza, inclinado à traição. Sua atitude no mundo é puramente extática, e, assim, pode ser perfeita; no momento, porém, em que se desloca do plano da contemplação para o da ação essa atitude corre todos os riscos de corromper-se... A inteligência apresenta-se quotidianamente em estado de demissão diante da vida, e é no intelectual que esta tendência niilista opera com maior agudeza. Não admira, assim, que a  família dos intelectuais tenha trazido uma contribuição tão fraca ao progresso das instituições políticas, quando chamada a trabalhar diretamente sobre elas. Essa contribuição é, entretanto,  imensa no domínio  abstrato, como se o intelectual fosse incapaz não só de concretizar as ideias como de pensar a realidade".

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