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Robert Redford, como Denys Hatton, e Meryl Streep como Karen Blixen, em cena de “Entre Dois Amores”.
Robert Redford, como Denys Hatton, e Meryl Streep como Karen Blixen, em cena de “Entre Dois Amores”.| Foto: Universal/Photofest

“Eu sinto quando estou mais triste / É melhor ter amado e perdido / do que nunca ter amado” talvez sejam os versos mais famosos de Lord Tennyson, presentes na seção 27 de seu longo poema In Memoriam A. H. H. O poeta levou 17 anos escrevendo esse poema, meditando sobre a morte de seu amigo Arthur Henry Hallam.

Provavelmente você já leu ou escutou os dois últimos dos versos com que abri este texto, mas tão provável quanto é não conhecer o antecessor, que dá ainda mais força aos seguintes. Você alguma vez já conseguiu ser grato por aquilo que perdeu e ainda lhe deixa muito triste? Ainda mais quando alguém que você ama morreu? Difícil, mas com o tempo é possível transformar a tristeza ruim em tristeza boa, chamada saudade.

Karen Blixen é uma boa professora para isso. É mais conhecida por causa dos filmes baseados em obras suas, como A Festa de Babette e A Fazenda Africana. Há um (ótimo) filme homônimo do primeiro e o segundo se tornou, na versão brasileira, o filme Entre Dois Amores, vencedor de sete Oscars em 1986.

Com o tempo é possível transformar a tristeza ruim em tristeza boa, chamada saudade

Karen só se tornou escritora praticamente aos 50 anos de idade. Antes, viveu no Quênia, para onde foi pouco antes da Primeira Guerra Mundial e lá ficou até 1931. Foi com seu marido cuidar de uma fazenda de café. O marido, porém, só queria saber de safáris e boa vida, deixando Karen com toda a responsabilidade. O casamento se desfez em poucos anos e Karen ficou com a fazenda.

Seu A Fazenda Africana é sobre esse período, uma espécie de livro de memórias, anotações de diário e pequenas histórias, sem uma arrumação cronológica, tendo sido escrito em 1933, ainda muito perto das perdas enormes que Karen teve por lá e que a obrigaram a voltar à Dinamarca com uma mão na frente e outra atrás em 1931.

Ela vendeu a fazenda por causa das consequências da crise econômica explodida em 1929, que derrubou o preço do café e a levou à falência. Além disso, seu grande amor, Denys Finch Hatton, com quem se relacionava depois do casamento terminado, morreu num acidente de avião no mesmo ano de sua falência. Ela o enterrou nas montanhas que avistava da varanda de sua casa da fazenda.

A forma do livro é a de uma despedida aos poucos. Da fazenda, de Denys, da vida que ela levara até ali. Como o impacto das perdas ainda era vivo demais, a forma dessa despedida só pode ser triste:

“Estava deitada na cama, repassando os acontecimentos dos meses anteriores. Procurava entender o que de fato havia acontecido. Minha impressão é que, de algum modo, eu me desviara do curso normal da existência humana, caindo num redemoinho no qual nunca deveria ter entrado. Onde quer que pisasse, o chão parecia fugir sob os meus pés, e as estrelas caíram do firmamento. (...) Tudo aquilo não podia ser, pensei, apenas uma coincidência de circunstâncias, aquilo que as pessoas chamam de maré de azar, mas devia conter em si algum princípio central. Se conseguisse descobri-lo, aí, sim, poderia me salvar. Se procurasse no lugar certo, refleti, a coerência das coisas poderia se tornar evidente para mim. O que eu precisava, concluí, era me levantar e buscar por um sinal.”

É nesse espírito, nessa busca, que ela escreveu o livro, que é mais do que resultado de um sinal encontrado, embora ainda não seja “algum princípio central” que explicasse as tragédias da vida. Foi algo “no meio do caminho”, algo suficiente para manter sua fé de que encontraria um sentido para tanta perda e dor. A fé que dá coragem e que transforma, com o tempo, a tristeza em saudade.

A fé na recompensa de tantas dores está sempre presente nos escritos de Karen Blixen, todos, adocicando o amargo de suas perdas e aos poucos transformando a má tristeza em boa, dando-lhe a forma de uma ação de graças

Isso fica simbolizado por uma das anotações que fez, lembrando de uma história que lhe contaram na infância, na qual o contador, à medida que ia contando os infortúnios de um homem, ia desenhando suas idas e vindas pela vida, até que no fim da história o desenho tomava a forma de uma cegonha:

“Sou muito grata a quem me contou essa história, e sempre me lembro dela nos momentos mais difíceis. Nela, o homem viu-se cruelmente equivocado e teve de superar os obstáculos colocados em seu caminho. Ele deve ter pensado: ‘Quantas idas e vindas! Que maré de má sorte!’ E deve ter se perguntado qual o motivo de todas aquelas tribulações, pois não podia saber com antecedência que se tratava de uma cegonha. Porém, ao longo de todas as dificuldades, ele nunca esqueceu seu objetivo; nada o fez desistir e voltar para casa; ele percorreu todo o seu caminho e manteve a sua fé. E no final teve a sua recompensa. De manhã, ele viu a cegonha. Então deve ter dado uma boa gargalhada.”

Karen ainda não conseguia sorrir, dar essa boa gargalhada de gratidão, muito menos ver qual o desenho do sentido da sua vida até ali. Mas a fé na recompensa de tantas dores está sempre presente em seus escritos, todos, adocicando o amargo de suas perdas e aos poucos transformando a má tristeza em boa, dando-lhe a forma de uma ação de graças tal como a eternizada por Tennyson. Em A Fazenda Africana esse processo estava no início, mas ela saberia que chegaria o dia em que olharia para suas tragédias e diria: “Aquela época ruim nos abençoou e foi embora”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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