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Foto: Sue Piozet/Free Images
Foto: Sue Piozet/Free Images| Foto:

Do canteiro separando as pistas da avenida, entre duas árvores baixas, frondosas porém sem frutos, o professor observava a fachada do que parecia uma casa antiga abandonada. Duas grandes janelas de madeira cerradas, emolduradas pela pintura descascada. Não havia porta, apenas um enferrujado portão de metal acinzentado escondendo, do chão à laje, o que havia para além do que se vê. O portão abriu com dificuldade, não mais do que o suficiente a permiti-lo entrar.

Mirou o longo corredor ladrilhado de vermelho até os fundos do terreno, avistando a varanda. À esquerda dos seus passos, as paredes derrubadas do casarão original mantido pelo teto que ainda o recobre deram espaço ao ateliê de Vitório, o prefeito que se tornou pintor, e até que dos bons. Ao fim do ateliê surgiam as árvores do pequeno pomar onde um banco de praça pintado de branco, recostado numa macieira, fez o professor sorrir. Enfim surgiu o espaçoso jardim, com sua horta variada e um pequeno chafariz funcionando. Na varanda, Maria terminava de pôr a mesa, onde um jarro de limonada repleto de gelo refrescava o olhar e uma vasilha guarnecida dos seus famosos bolinhos de arroz quase restaurava a infância.

“Chegou em boa hora, homem! Maria acabou de fritar uma fornada de bolinhos de arroz. Venha, se achegue!”, berrou Vitório da rede, já se levantando ao notar o amigo chegando.

“Assisti a uma cena preciosa há instantes, Vitório, daquelas que você iria gostar de pintar.”

Sentaram-se, com Vitório oferecendo seus cigarros espanhóis. Antes de acendê-los, serviram-se da limonada e atacaram os primeiros bolinhos. Só então o professor prosseguiu, gesticulando com o cigarro queimando entre os dedos.

“Eu passava por aquela pracinha perto da rodoviária. Notei um casal atravessando a rua com dificuldade, carregando duas malas grandes e pesadas, pretas. Pararam de repente na calçada à minha frente e só então vi um menino de uns 2, 3 anos de idade que de mim vinha escondido por trás de uma das malas. Subitamente correu em direção a uma das árvores, voltando a se esconder de mim. Alguns passos adiante e o descobri abraçado a um homem agachado. Foi nesse instante que pensei em você, no quanto você saberia retratar, do drama da situação, as vidas que se cruzam e se perdem, talvez se reencontram, provavelmente não… Enfim, o sujeito alto carregando a mala maior estava de costas para mim, mas podia-se ver que era bastante jovem, provavelmente ainda adolescente. A mulher tinha pele mais escura, era baixinha e um pouco gorda. Só a enxergava de perfil, com as mãos cobrindo parte do rosto, tremendo. Era moça, não devia passar dos 30, mas parecia ter mais. Ela chorava observando o menino. O homem agachado, por sua vez, deveria ter por volta dos 50 anos, mas se vestia como se tivesse 20. Mantém os cabelos grisalhos, para não parecer totalmente ridículo, e usa óculos com hastes grossas, escuras, também incoerentes com os vincos do seu rosto. Acho que basta, não?”

“No primeiro plano eu daria ênfase às malas, pintando sobre muita luz. O rapaz estaria escorado na maior, com uma camiseta preta, amalgamado ao detalhe. Dela, tentaria dar contornos mais definidos das mãos, quase como se não fossem suas. Pinceladas nubladas para dar o efeito do tremor. O olho teria um brilho opaco. Ao fundo, o menino de costas, roupas coloridas, cabelos cacheados, inteiramente iluminado. O homem sorriria, tristemente, encarando a mulher por detrás do abraço. Tentaria retratar sua incoerência, mas ainda não sei como. Você vinha em direção ao Centro, certo?”

“Sim.”

“Hum, então seria preciso destacar a profundidade da perspectiva. A continuidade da canaleta dos ônibus seguindo aparentemente ao infinito, cortejada por prédios e protegida por nuvens no horizonte. Das árvores da praça apareceriam apenas alguns galhos soltos, no alto, encobrindo o céu. Dois ou três carros ao fundo, parados no sinal fechado e uma sombra vermelha do ônibus passando no canto esquerdo. Daria trabalho, sem dúvida, mas valeria a pena.”

“Acha que entenderiam?”

“Talvez. Ando me surpreendendo, sabe?”

“Ao menos um de nós…”

Uns instantes de silêncio. Era impressionante. Adentraram não mais que 100, cento e poucos metros, mas nada se ouvia da rua, nem dos vizinhos – construções antigas desabitadas ou tornadas depósitos comerciais não frequentados nos fins de semana. O vento soprava fraco, deixando a fumaça dos cigarros estacionada no ar. O chafariz derrubava água, o gelo trincando no copo ao receber a segunda dose de limonada. Então Maria ressurgiu, de avental e lenço vermelho prendendo os cabelos, perguntando ao marido se podia servir o almoço, mas Vitório pediu para esperar mais alguns minutos.

“Tem tido novos alunos?”

“Pacientes, você que dizer?!”

Entreolharam-se.

“Mais do mesmo, Vitório, mais do mesmo… Perdoe o mau humor, deve ser fruto do cansaço…”

“Essa melancolia não lhe cai bem…”

“Não se engane, velho amigo. Essa melancolia pouco diz sobre mim, apenas aponta para uma realidade que já não ando suportando conviver…”

“Uma; não toda a realidade …”

O professor não escondeu o incômodo, espremendo o toco de cigarro no cinzeiro de barro. Maria retornou trazendo a travessa de arroz, o prato com laranjas cortadas, a couve refogada e os torresminhos. Vitório perguntou se ele continuaria com a limonada ou se iria se permitir uma cerveja.

“Você sabe que não bebo”, respondeu firme, com meticulosa tranquilidade.

Vitório deu de ombros e saiu dizendo algo como “por isso que fica triste assim”. Retornou com um balde transbordando de gelo, com três garrafas de cerveja dentro, acompanhado de Maria carregando o panelão de feijoada. Serviram-se, reclamando do vento que sumira de vez. Conversaram apenas amenidades, como a boa campanha do Athlético – “Neste ano não tem pra ninguém” –, seguida das últimas barbaridades do padre da paróquia que Maria frequentava e à qual Vitório se recusava a ir (“Parece um rapper!”). Assim seguiram até o professor ceder, dissolvendo a melancolia e fazendo todos darem risada com a história de uma menina que ele atendera naquela semana, histérica porque o pai a chamava de puta a todo instante. “E você é puta?”, perguntou o professor . “Não!”. “Muito bem, então, aula encerrada!”.

Assim o tempo passava, despercebido, até a feijoada regada à cerveja fazer o efeito desejado em Vitório, que pediu licença e se deitou em uma das redes da varanda. O professor ajudou Maria a tirar a mesa, mas ela o proibiu terminantemente de auxiliar com a louça. Aproveitou para passear pelo quintal, contemplar as árvores e espiar as últimas obras de Vitório, sentando-se, por fim, no banco encostado na macieira. Soltou sua cabeça sobre o ombro esquerdo para acompanhar um passarinho saltitando entre os galhos. Achava engraçado como sempre quis morar em um lugar assim, sossegado, espaçoso e vivo, mas nunca conseguiu e, agora que poderia, preferia ficar no mesmo apartamento em que vivia havia mais de duas décadas, desde que se separou da última mulher. Não fazia mais sentido. Mas, por quê? Não teve tempo de pensar a respeito, pois o aroma do café o fez retornar à mesa, encontrando Maria terminando de passá-lo, enquanto Vitório roncava na varanda.

“O cheiro está ótimo, Maria!”

“Oh, obrigado! Mas já aproveitou o suficiente da macieira? Olhe que ela deixa mais inteligente quem com ela se confessa, hein!”

“Ah, na nossa idade as confissões estão feitas. Os novos pecados são apenas um crime continuado… Resta rezar para Deus nos perdoar, nada mais.”

“O senhor anda soturno, ultimamente…”

“É? Talvez…”

“Aposto que é a solidão… Se ao menos o senhor aceitasse vir morar conosco… Espaço não falta, o senhor sabe disso!”

“Mas sem a solidão eu nada seria, Maria! Por mais que eu tenha tentado escapar, a ela fui destinado e só nela consigo ser quem eu sou. Muito mais sozinho estive quando casado…”

“Porque nunca encontrou a mulher certa, aposto!”

“Antes fosse, Maria, mas a verdade é que não mereci nenhuma das que tive…”

“Certamente isso atrapalhou… Mas, desculpe, no fim das contas, isso não tem importância alguma…”, disse Maria, convicta, saindo para buscar o açucareiro.

Quando voltou, o professor não resistiu e lhe perguntou. Vitório já contara tudo sobre eles, mas jamais ouvira a história pela perspectiva dela.

“Você sabe que Vitório nunca foi santo… Durante muito tempo as coisas foram difíceis… Cansei de trancar a porta e fazê-lo dormir com os cachorros, na garagem… Cheguei a morar com minha irmã alguns meses… Depois dessas cenas ele até sossegava um pouco… Depois, voltava à velha forma, não conseguia não fazê-lo. Enfim, lembro nitidamente do dia em que ele ganhou sua última eleição e só voltou para casa no dia seguinte. Eu sabia que ele estava com uma daquelas assessoras… Mas não fiz nenhuma pergunta, aliás, nunca fiz… Deixei o café da manhã pronto, ajudei-o a trocar de roupa. Cheio de remorso, não conseguiu me encarar. Então, quando ele se levantou para levar a xícara na pia, onde eu lavava a louça, recebi-o com um sorriso. Simplesmente sorri, complacente, como se ele fosse uma criança travessa, não um… Não que eu o tenha autorizado, não foi isso… Ficou mais difícil para ele… Mas continuou. Desde então, nunca mais briguei… Minhas amigas achavam um absurdo… Os filhos nunca entenderam, nem vão… ‘Como pai ele é ótimo, mãe, mas se fosse meu marido, já tinha me separado há muito tempo!’ Sim, o divórcio era uma solução, sem dúvida, talvez tivesse até encontrado outro um pouco melhor, quem sabe? Mas nunca quis isso. Amar exige sacrifício, dedicação, sofrimento, muito sofrimento… Quando ele perdeu a eleição seguinte, sumiram todos. Sumiram as assessoras, as festas, os convites… Ele ficou muito deprimido, mas aí o senhor sabe bem. Não fosse o senhor, acho que ele jamais teria se recuperado. Descobriu a pintura, parou de pular a cerca, começou a me ajudar mais. Às vezes a gente assiste a um desses filmes bobinhos de hoje em dia, com aqueles finais felizes que não dão nem ideia do que vem depois deles e fico pensando: se não houvesse as tribulações pelas quais passou o casal durante quase toda a história, o final nunca seria feliz, não é? Acho que o fim só é feliz por conta delas, não apesar delas…”

“E eu que me achava velho demais para me surpreender com as mulheres…”

Vitório tinha acordado e contemplava a cena como um pintor a registrar a eternidade. Passava um filme em sua memória, mas ele estava em paz. O professor notou, espantando-se com a expressão de inocência no olhar de Vitório.

“Quem dera eu fosse um pintor agora, Vitório, quem me dera…”

“Mas você é, meu amigo, você é. Sem você, não haveria esse quadro…”

Pela primeira vez, aceitou o convite para passar a noite, e foram dormir tarde, tendo conversado sobre tudo um pouco, contando histórias da vida, as tribulações, aquelas que tornam os finais felizes. Na manhã seguinte, o galo cantou atrasado, como se fosse de propósito. Encontrou Vitório sentado na varanda, tomando calmamente sua primeira xícara de café forte do dia, absorto. Lembrou-se de quando o conheceu. Depois da eleição perdida, a falência obrigando a se desfazerem de quase tudo. Vieram morar aqui, no único imóvel que restou da herança do pai de Maria. Às vezes, é preciso jogar fora uma vida inteira para descobrir que não se perdeu toda a vida. Vitório bebia na xícara de cerâmica comprada na lua-de-mel deles. Não havia notado o professor, contemplava Maria usando um lenço vermelho a esconder os frágeis cabelos, colhendo graciosamente verduras na horta. Na hora certa ela se voltou e os três sorriram, descobrindo-se uns aos outros, como se fossem crianças brincando de esconde-esconde, mas sem precisar correr ao pique para ficarem salvas.

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