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Cena do filme Capitão Fantástico.
Cena do filme Capitão Fantástico.| Foto: Divulgação/Electric City Entertainment/ShivHans Pictures

(Des)Prezado esquerdista,

Eu, da bolha em que cá estou, dirijo-me a ti, na bolha em que aí estás. Ok, desculpe, esse negócio de usar a segunda pessoa é do tempo de outras bolhas, é verdade, então te chamarei por você mesmo, ok? Viu como temos algo em comum? Ambos embolhados. E falamos a mesma língua (ainda), o que nos dá mais do que algo em comum, mas uma bolha pra chamar de nossa. Outra: vivemos na mesma época. Certamente teríamos mais dificuldade para nos comunicar com o pessoal da bolha de 1690, não acha? Naquela época “você” era vossemecê, pense.

Antigamente, aliás, chamavam as bolhas de cosmovisão, sabia? Nome chique, portentoso até, para o que nada mais é do que uma bolha metida a ser do tamanho do universo. E havia bolhas maiores do que isso, juro. Chamavam-nas de metafísicas, mas, olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que todas as religiões não ensinam mais que a confeitaria. Espero que essa referência literária faça parte da sua bolha, mas para evitar maiores complicações não farei outras.

Enfim, escrevo para propor o que talvez pareça uma maluquice; ainda assim espero que aceite. Que tal deitarmos nossa tolerância ao chão (é a mesma referência, então ainda está valendo!)? Há coisas aí que são inaceitáveis para você assim como há outras para mim aqui e jamais iremos entrar em acordo a respeito delas. Que tal, portanto, entrarmos na bolha da intolerância onde somos de fato todos iguais, pode ser?

Lá não tem muita diferença com as bolhas em que vivemos, garanto. Já testei com amigos de outras bolhas, como os isentões, que ficaram meio horrorizados no começo com a inexistência de defensores de instituições corrompidas de direito, mas depois deixaram de fazer pose como se realmente se importassem e até xingaram o que odiavam. Porque lá não precisamos mentir nem nos esforçar para fingir magnanimidade. Verá, então, como isso diminui consideravelmente a animosidade. Porque a verdade liberta mesmo, ainda que seja uma verdade feia de se ver ou ouvir.

Na saída, seremos como o protagonista do filme Capitão Fantástico, já assistiu? Conta a história de um pai que sente repulsa do mundo em que vive e cria seus filhos dentro de uma bolha apartada da sociedade. Não, não é sobre a família Bolsonaro, mas na bolha da intolerância essas piadas estão liberadas. Bem mais divertido, não? Você curtirá muito o capitão do filme, tenho certeza. É um esquerdista com culhão, coisa rara hoje em dia. Ele celebra até o Dia de Chomski. Por que eu seria intolerante com isso? Bom, imagina aí se fosse para celebrar o Dia do Olavo de Carvalho. Sentiu a repulsa, né?

Gostei do filme, juro. Especialmente porque fornece um retrato perfeito do que acontece quando nos fechamos em nossas bolhas, tanto faz quais sejam. Há cenas hilárias quando os filhos criados dentro da bolha do capitão entram em contato com pessoas de fora dela. Por exemplo, quando o filho mais velho se engraça com uma menina “normal”. Quando pego no flagra pela mãe dela (não tinham feito nada demais, apenas uns beijos) não concebeu outra alternativa que não fosse pedir a menina em casamento, perguntando o sobrenome dela durante o pedido. Ridículo foi pouco, embora ele não percebesse isso. Não sabia como era ter contato com quem realmente fosse diferente.

Ou seja, apesar dos filhos do capitão lerem muito, serem instruídos, cultos até, esta cena, dentre outras, mostra bem o que acontece com todo embolhado, como nós: carecemos de experiência humana, verdadeiramente diversa, não apenas de ouvir falar ou desejar defender. Possuímos apenas uma experiência livresca ou internetesca (bolhesca, enfim) e periga sermos capazes de incendiar o mundo se preciso for para que a realidade se encaixe em nossas bolhas. No filme a família do capitão era esquerdista, ateia etc., mas aconteceria o mesmo se fosse direitista religiosa.

No fim, o capitão é forçado pela realidade a aceitar que sua bolha não pode ser absoluta, sem contato algum com outras. Muitos críticos acham que o filme perdeu muito de sua força com o final que lhe deram, mas eu penso o contrário. A cena do café da manhã na cozinha ao som de I Shall Be Released, de Bob Dylan, mas na voz de Kirk Ross e Tyra Juliette, é sublime. O que à luz da bolha em que a família vivia parece certamente uma rendição, fora dela todos ali sabiam que haviam sido, na verdade, libertados de uma prisão. Nada indica que tenham mudado de valores, de visão de mundo, mas certamente já não se colocavam como juízes de todos os valores e visões de mundo.

Então, bora lá?

Do seu (des)prezado direitista,

F.E.

P.S.: O convite não tem prazo de validade e pode levar quem quiser junto, a bolha da intolerância é como coração de mãe.

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