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Antonio Cruz/Agência Brasil
Antonio Cruz/Agência Brasil| Foto:

Cem anos para uns, mal começando para outros, assim vem sendo percebido o governo de Jair Bolsonaro que correu a anunciar trocentas medidas para dar conta de dizer que cumpriu as metas estabelecidas no início do ano para os seus primeiros 100 dias. Mas foi tanta coisa junta que não deu tempo ainda sequer de tomar conhecimento de tudo, quanto mais analisar. Muitos decretos revogados, o que é sempre boa notícia, mas outros tantos publicados, o que sempre exige ceticismo. Enfim, como diria Carlos Andreazza, o editor e colunista de rádio e jornal sem dúvida metódica, a ver.

Enquanto isso, fico aqui a lamentar o que não vemos, nem parece que veremos. Com uma realidade tão fantástica como a que estamos vivendo nos últimos anos, será possível que não exista um único escritor por aí a romancear essas histórias de personagens incríveis (mesmo) como Dilma, Lula, Adélio, Jean Willys e o próprio Jair Bolsonaro? Se há, por favor, avisem-me. Porque na falta deles, vou me virando comigo mesmo.

Já tentei algo em algumas colunas por aqui, aliás, com Lula e Dilma. Meros exercícios, sem maiores pretensões, mas de cujos resultados gostei. Ao leitor curioso, os arquivos da coluna estão à disposição. Nesta semana de tantos balanços desses primeiros 100 dias de governo feitos pela situação e oposição, vulgo imprensa, fiquei praticando um exercício comum para escritores principiantes, que é copiar trechos de romances adaptando para a história que se quer contar. Por exemplo, se trocarmos Ismael por Jair Bolsonaro em Moby Dick, de Herman Melville, temos um bom começo para a história de sua jornada para a conquista da Presidência da República, desde quando ela parecia impossível até para si. Acho que ficaria mais ou menos assim:

Chamem-me simplesmente Jair. Há alguns anos – quanto precisamente não vem ao caso –, tendo eu pouco ou nenhum dinheiro na carteira e nenhum interesse em terra, ocorreu-me voltar ao programa da Luciana Gimenez, ou seja, aventurar-me de novo pelas vastas planícies líquidas do Mundo. Achei que nada haveria de melhor para desopilar, quer dizer, para vencer a tristeza e regularizar a circulação sanguínea. Algumas pessoas, quando atacadas de melancolia, suicidam-se de qualquer maneira. Catão, por exemplo, lançou-se sobre a própria espada. Eu instalo-me tranquilamente entre anões e travestis num estúdio de TV.

O que o convenceu a disputar a presidência me parece estar bem expresso em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, que exige mudança de apenas uma palavra, a última, trocando o demo por:

Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o comuna.

Com Jair Presidente, acho que A Metamorfose, do Kafka, cai bem:

Quando certa manhã Jair Bolsonaro acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num presidente da República. Estava deitado sobre suas costas guardadas pelo filho Carlos e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre furado, depilado, dividido pela mangueirinha da bolsa escrotal, no topo da qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Seus numerosos grupos no WhatsApp, lastimavelmente cheio em comparação com o volume de pessoas de confiança ao seu redor, tremulavam em notificações desamparadas no celular diante dos seus olhos.

Como quem roubou a cena da posse foi a primeira dama, que tal um exercício mais desafiador usando Lolita, de Nabokov?:

Michelle, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Mi-che-lle: a ponta da língua descendo depois do Mi em dois saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Mi. Che. Lle. Pela manhã ela era Mi, não mais que Mi, com seus trinta e sete anos de idade e calçando uma única meia soquete. Era Lelle ao vestir os jeans desbotados. Era Mimi na escola. Era Primeira Dama sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Michelle. Será que teve uma precursora? Sim, de fato teve. Na verdade, talvez jamais teria existido uma Michelle se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial, talquey?

Já sobre esses primeiros 100 dias de governo, aí teríamos de optar por uma perspectiva. A do governo acho que pede um Homero, o da Odisseia:

Musa, reconta-me os feitos do heróis astucioso que muito

peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas do establishment;

muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes,

como em Juiz de Fora padeceu sofrimentos inúmeros na alma.

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta.

Bebbiano e Velez, porém, não salvou, muito embora o tentasse,

pois pereceram por culpa de suas ações insensatas.

Já a imprensa, digo, oposição, certamente ficaria com Notas do Subsolo, de Dostoievski:

Sou um homem doente, talkey?… Sou mal. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha presidência e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os economistas e a economia. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar católicos e evangélicos. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não quero me tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem.

Aposto também que adorariam usar Anna Kariênina, de Tolstoi: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Tudo era confusão na casa dos Bolsonaro.”

Enfim, e como será que esta história terminará? Certamente como realidade fantástica, disso não tenho dúvidas. Quem melhor, então, do que Gabriel Garcia Marques, em seu clássico Cem Anos de Solidão, para nos ajudar a imaginá-la? Talvez seja assim: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento da imprensa, o capitão Jair Bolsonaro haveria de recordar aquela tarde remota em que o filho o levou a conhecer o golden shower.”

Que falta nos faz a literatura, não acha, leitor não só de jornal? Quando (e se) a tivermos, aí sim começo a acreditar numa nova era de verdade, nem que seja apenas para transmitir a alguém o legado da nossa miséria.

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