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Equipe do Hospital do Trabalhador fazendo o registro dos retratos.
| Foto: Bianca Kloss/Hospital do Trabalhador

Já ensinava Aristóteles que a coragem não é apenas oposta à covardia, mas também à temeridade. Se aquela é o vício pela deficiência de coragem, esta é o vício pelo excesso dela. Quando perdemos a justa medida entre ambas, que é a coragem, os temerários sequestram e pervertem o heroísmo enquanto os covardes prostituem a prudência, dando à covardia aparência de outra virtude.

Com essa pandemia que nos assola estamos tendo amostras diárias de ambos os vícios. A covardia virou política de vários estados e municípios e contaminou boa parte da população, em especial as classes média e alta, que têm casa, wi-fi e cartão de crédito para poder ficar trancadas com razoável conforto, assistindo a lives diárias e postando nas redes sociais fotos de comidinhas e bebidinhas, como se suportar a pandemia fosse algo parecido com passar uma temporada num resort all inclusive.

Mas quem mora em favelas e comunidades apinhadas de gente, com “casas” de praticamente um cômodo, sem wi-fi nem poupança, com várias pessoas morando juntas, escutar um “fique em casa” dessa gente bacana e supervirtuosa que aparece nas bancadas dos telejornais e coletivas de governantes, com grana pra poder aguentar algumas semanas sem qualquer entrada de renda, parece mais é provocação, só conseguindo enxergá-los como um bando de covardes mimados e egoístas.

A covardia contaminou boa parte da população, em especial as classes média e alta, que têm casa, wi-fi e cartão de crédito para poder ficar trancadas com razoável conforto, assistindo a lives diárias

É muito provável que quem não tenha essa opção de “ficar em casa” se identifique mais com a postura solitária do presidente da República, crítico das políticas estaduais e que sai de casa o tempo todo, sem máscara ou qualquer cuidado maior, indo à padaria, farmácia, participando de aglomerações, crente que, se pegar a doença, será como uma gripezinha e não sofrerá nada por ter tido um passado de esportista.

Melhor retrato da temeridade não há. Jair Bolsonaro tem 65 anos de idade, faz parte do grupo de risco dessa doença e, se foi um esportista antigamente, sofreu no passado mais recente uma facada que quase o matou e que debilitou muito sua saúde, a ponto de ainda hoje precisar de constantes cuidados e avaliações médicas para lidar com as consequências daquele crime. Ou seja, não tem como o presidente saber se a Covid-19 será para ele como uma gripezinha ou se o levará à morte, como levou milhares de pessoas mundo afora. Sua postura, portanto, não é corajosa, mas temerária, dando tão mau exemplo quanto o dos covardes que com acerto critica.

Entre temerários e covardes, onde estão os corajosos? Estão, por óbvio, nos hospitais e postos de saúde, nos profissionais médicos e de saúde em geral que não correram arranjar algum atestado médico para fugir covardemente de medo da pandemia, mas que a enfrentam diariamente, tomando os cuidados possíveis para não serem contaminados, porque sabem que pode não ser uma gripezinha.

Estão no transporte público que é sempre foco de transmissão de doenças, mas sem o qual não pode viver o trabalhador informal que precisa ganhar com seu suor o dinheiro do pão que sua família come no mesmo dia. Estão nos ônibus e metrôs onde milhares de anônimos mascarados, com luvas e potinhos de álcool gel, encaram não só o risco da doença, mas também de serem presos por uma política covarde sob aplausos daqueles que arrotam “fique em casa” com bafo de vinho e controle remoto nas mãos.

Estão nos pequenos comércios cujas portas estão fechadas para tentar escapar do arbítrio estatal que os proíbe de trabalhar e ganhar seu sustento, mas que o consumidor sabe que funciona para dentro, bastando dar uma batidinha na porta para ser atendido, porque a “vida” só pode ser entregue através de aplicativos de delivery se tiver pessoas reais atendendo, preparando e entregando os produtos, seja na porta dos estabelecimentos ou das nossas casas.

Não são poucos os corajosos, graças a Deus. Acredito mesmo formem até a maioria da sociedade, aquela que precisa trabalhar para viver e não tem tempo para ficar levantando hashtags no Twitter pedindo impeachment de quem quer que seja. Essa maioria silenciosa que vive nesse paradoxo da coragem, como bem disse Chesterton em sua obra-prima, Ortodoxia: “A coragem é quase uma contradição em termos. Significa um forte desejo de viver que toma a forma de uma disposição para morrer”. Enfim, a coragem, no momento em que vivemos, é menos um ato heroico e mais uma força de resistência contra a pusilanimidade dos covardes e a estultícia dos temerários.

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