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Das coisas que perdemos pelo caminho (parte 2)
| Foto: Felix Mittermeier/Pixabay

Nem todas as civilizações e culturas tiveram ou têm filosofia e ciências, mas inexiste alguma sem poesia, sem histórias, sem mitos. A própria filosofia, quando surgiu no que depois chamamos de Grécia, nasceu mais simbólica do que conceitual.

Aristóteles, em sua Metafísica, aponta que os primeiros filósofos pensaram os primeiros princípios da realidade sob a forma de matéria, como Tales de Mileto, que dizia que “tudo é água”. Mas quantos significados “não materiais” não encharcam o termo “água” expressado por Tales? A realidade natural é toda simbólica e pelos símbolos acessamos o que transcende a dimensão material.

Nos primórdios civilizacionais não se enxergava nos corpos celestes e terrestres apenas matéria, mas forças e poderes para além do “natural”, cuja linguagem para expressá-los enxergava nas estrelas como Vênus, Marte, Júpiter, Saturno etc. mais do que planetas, mas deuses. Se “tudo é água” já quer dizer muito, imagine “tudo é um deus”.

A realidade natural é toda simbólica e pelos símbolos acessamos o que transcende a dimensão material

Do mito ao logos foi um longo processo durante o qual o aprimoramento da linguagem simbólica a transformou em uma Ciência (sim, com maiúscula) que na modernidade (sim, com minúscula), infelizmente, acreditamos ser necessário abandonar pelo caminho, descarnando os “deuses” para transformá-los em termos unívocos. E com isso as estrelas voltaram a se tornar distantes, frias, indiferentes, com sua influência mecanizada como se fosse um relógio, sem nada além de “natural” a nos dizer.

É aí que os poetas, profetas dos tempos esvaziados de sentido, tornam-se indispensáveis. Especialmente os líricos, as almas solitárias diante da imensidão do universo tornado enigma, a falar do fundo do seu coração, expressando sua solidão cósmica, como Manuel Bandeira em A Estrela:

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

Ou Vinícius de Moraes, em seu poema A Estrela Polar, que, expressando o mesmo, fala não só por si, mas pela tristeza comungada da humanidade distante de um sentido maior para sua existência:

Eu vi a estrela polar
Chorando em cima do mar
Eu vi a estrela polar
Nas costas de Portugal!
Desde então não seja Vênus
A mais pura das estrelas
A estrela polar não brilha
Se humilha no firmamento
Parece uma criancinha
Enjeitada pelo frio
Estrelinha franciscana
Teresinha, mariana
Perdida no Pólo Norte
De toda a tristeza humana.

Mas os poetas não expressam apenas o sentimento de abandono, de tristeza diante do que perdemos pelo caminho, também interrogam o mesmo universo tornado enigma, entre o aterrorizado e o maravilhado, como Drummond no seu famoso poema A Máquina do Mundo, trechinho abaixo:

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.

Os poetas, profetas dos tempos esvaziados de sentido, são indispensáveis. Especialmente os líricos, as almas solitárias diante da imensidão do universo tornado enigma, a falar do fundo do seu coração, expressando sua solidão cósmica

Não há como falar de poesia sobre as coisas que perdemos pelo caminho, nem abrir nosso peito para agasalhá-las novamente sem recorrer a Fernando Pessoa, que em Tenho dó das estrelas disse:

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Para agasalhar esse perdão, mais poesia. Se os escutarmos, mas escutar de verdade, não estaríamos, na realidade, ouvindo as estrelas, como Olavo Bilac?

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.

Se essa esperança não perdermos pelo caminho, a fé feita de amor nas estrelas nos ensinará a escutá-las. Começando por mirá-las para além do corpo material que as forma, mas não as esgota

Amar para entendê-las. Não haveria aí – e aí sim – qualquer coisa assim como um perdão? Disso não receberíamos uma esperança ao fim do dia, como disse Manuel Bandeira, a consolar da tristeza pela distância que estamos das estrelas? Não entenderíamos, enfim, que essa esperança sustenta o mundo, como disse João Filho, poeta contemporâneo que merece ser muito mais conhecido e lido, que em Adélia de Castro na Igreja da Graça disse:

Aprendi a esperar algumas coisas:
amigos, certos livros, boas chuvas,
a luz dentro do tempo nas manhãs,
o seu corpo sonhando no meu colo,
os versos invisíveis mais à mão,
a passagem das horas descabidas
em que as harpias seculares guincham
meu nome de batismo como cúmplice.
Aos pés da espera, sentam-se as idades
e a paciência é fruto de outra espera,
tendo o silêncio como único ouvinte.
E cai o gota-a-gota dos segundos
no olho do real com mais doçura
e entendo que esperar sustenta o mundo

Se essa esperança não perdermos pelo caminho, a fé feita de amor nas estrelas nos ensinará a escutá-las. Começando por mirá-las para além do corpo material que as forma, mas não as esgota. Há ali uma qualquer coisa como uma janela simbólica por onde o que nos transcende transborda na forma de luz. A luz dos astros que nos orienta pelas noites. A luz das estrelas a nos maravilhar, formando a matéria dos poetas. Escutá-los é ouvir estrelas.

Mas, se elas falassem “por si”, o que diriam, no fim das contas? Não estão a dizer qualquer coisa assim como “Onde estás?” (Gn 3,9)? Ou “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante?” (Gn 4,6)? Ou “Quem é este que obscurece a Providência com discursos sem sentido?” (Jó 38,2)? Perguntas cujas respostas as mesmas estrelas já nos deram, seguem a nos dar todos os dias, a começar por: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1,28).

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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