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O presidente Jair Bolsonaro e parlamentares do PSL convidados para reunião em que foi anunciado o  partido “Aliança pelo Brasil”.
O presidente Jair Bolsonaro e parlamentares do PSL convidados para reunião em que foi anunciado o partido “Aliança pelo Brasil”.| Foto: Reprodução/Facebook

Na semana passada publiquei neste espaço uma história oral da nova direita contada por Lucas Mafaldo, pesquisador com experiência nas áreas de políticas públicas, ciências políticas e filosofia, e que foi também um agente e observador dessa história. Outros textos seus, aliás, podem ser encontrados em seu site pessoal.

Em razão disso, pedi uma breve entrevista com Lucas, fazendo apenas duas perguntas para saber melhor como ele vê o atual momento dessa nova direita. As suas respostas estão na íntegra.

Antonio Paim, em seu clássico História do Liberalismo Brasileiro, deixa claro que o grande drama político brasileiro é a efetiva representação de todos os interesses presentes na sociedade. Neste sentido, a crise atual de representatividade nada teria de nova, sendo apenas mais um capítulo dessa história em cujo início Paim destacou o fato de que conservadores e liberais estavam juntos e que a grande divisão que se estabeleceu desde logo com a independência não foi entre eles, e sim entre “radicais” e “moderados”. O ressurgimento da direita no país parece guardar semelhanças com aquele cenário, inclusive nos capítulos seguintes da nossa história, menos quando Paim ressalta que, com a criação de partidos políticos, os radicais foram isolados e os moderados, então, se fracionaram em conservadores e liberais. Embora exista a intenção de supostos “moderados” de isolar os que consideram “radicais”, como se vê pelo realinhamento do MBL, que, para dialogar, prefere convidar políticos de esquerda em vez de “radicais” de direita, aquele isolamento parece impossível de acontecer no momento pela efetiva representatividade que os “radicais” possuem na sociedade, o que me parece se tornará mais evidente com a criação do novo partido “puro sangue” capitaneado pelo presidente da República. Como você vê a questão da representatividade dos “radicais” ou “jacobinos” e a forma como os “moderados” respondem a isso?

Entender as dinâmicas políticas reais por trás da agitação retórica desse momento é um desafio enorme. Estou convencido de que poucos dos argumentos em circulação conseguem ir além da mera disputa por espaços e apresentar diferenças programáticas e ideológicas substantivas.

Por exemplo, o rótulo de “radicais” ou “jacobinos” não me parece ter muito valor descritivo. Ele obviamente cumpre uma espécie de função conotativa, na medida em que deixa a impressão de que há algo de errado com parte da base de apoio do presidente Bolsonaro. Mas raramente se explica exatamente o que haveria de errado com o grupo: ele está sendo criticado por defender um presidente correto pelos meios errados, ou simplesmente por defendê-lo em primeiro lugar? No primeiro caso, o problema dos “jacobinos” seria o de serem maus bolsonaristas. No segundo, o problema é a existência de bolsonaristas em geral.

"Ainda estamos sofrendo os efeitos de uma 'politização prematura' da nova direita"

Eu considero o rótulo de “radical” ainda mais problemático porque considero – e sei que isso parecerá chocante para muitas pessoas – que Bolsonaro é um líder bastante conciliador. Afinal, além de ter sido eleito democraticamente (e, portanto, fazendo um discurso que fez sentido para boa parte da sociedade brasileira), ele conseguiu criar uma ampla coalizão com membros de diferentes grupos com interesses e ideologias distintas, indo além da nova direita (ela mesmo bastante fragmentada) para incluir outros setores da sociedade, como os evangélicos, militares e pautas populares sem ligação ideológica específica (como combate à corrupção, a indicação de cargos técnicos no primeiro escalão etc.).

Nesse sentido, eu não sei se a criação de um novo partido será suficiente para elevar a qualidade do debate. Creio que o problema é mais fundamental: ainda estamos sofrendo os efeitos de uma “politização prematura” da nova direita. Parte disso é efeito de causas profundas: o Brasil é um país com uma economia fechada, com poucas oportunidades de ascensão social fora da burocracia. Os intelectuais que não tinham conseguido ser absorvidos pelas universidades (elas mesmo, aliás, ambientes altamente partidários) tentaram e fracassaram em criar um ambiente de think tanks, durante aquilo que eu chamei de “fase institucionalizante” da nova direita. Com as campanhas eleitorais de 2016 e 2018, boa parte dos “quadros” da nova direita foi absorvida pelos partidos e pelos governos subsequentes. Infelizmente, a participação direta na política gera necessariamente um empobrecimento do debate nacional, pois membros de partidos e movimentos políticos precisam tomar cuidado com o que dizem em público, já que precisam controlar a repercussão das suas palavras na reputação do seu grupo. Por esse motivo, a efervescência argumentativa que se via nos primeiros dias da nova direita migrou prematuramente para os grupos fechados – seja para as conversas pessoais, seja para os grupos de WhatsApp, diminuindo a quantidade de “capital intelectual” em circulação. Note-se ainda que mesmo os intelectuais fora do governo acabam se comportando como políticos, na medida em que, mesmo quando não fazem parte do governo atual, calculam sua atuação de modo a potencializar sua participação em governos futuros.

Em outras palavras, acho que estamos com um problema de cobertor curto: quando puxamos os intelectuais para dentro do governo, eles ficam faltando em posições mais transparentes junto à sociedade. Por esse motivo, eu considero que a recomendação de Olavo de Carvalho para que seus alunos evitassem assumir cargos oficiais foi excelente. Embora certamente seja importante termos pessoas competentes dentro da máquina do governo, há um trabalho enorme e importante a ser feito diretamente junto à sociedade. Para citar um exemplo bastante concreto, considero que o Silvio Grimaldo, embora certamente esteja fazendo falta no MEC, tem feito um excelente trabalho desde que deixou o governo. Suas explicações, por exemplo, sobre a natureza e influência do positivismo na política brasileira me parecem importantíssimas, tanto para compreender o momento atual, como para o futuro da nova direita brasileira.

Com a criação do novo partido, é possível dizer que estamos mudando de fase nesse processo, ou seja, começando a ter dentro da direita efetiva diferenciação a ser feita mais por programas políticos do que por diferenças “de estilo de comunicação e personalidade”?

Eu acredito que a fundação do novo partido é extremamente positiva. Eu já comentei em outras ocasiões que é espantoso que um presidente popular como Bolsonaro não tenha uma base partidária mais sólida. O fato de esse partido ser criado apenas agora mostra que há algo de muito problemático na estrutura partidária brasileira – há uma distância enorme entre os partidos e a população.

"O nosso sistema eleitoral impede que a população tenha poder sobre a classe política"

Dito isso, eu não acredito que a criação de um partido é, em si mesma, suficiente para mudar problemas estruturais tão profundos. Há uma relação direta entre o poder das elites partidárias, sua distância da população, a multiplicação dos partidos e as regras eleitorais brasileiras. O nosso sistema eleitoral impede que a população tenha poder sobre a classe política. Por mais impopular que seja um político, ele sempre pode ser reeleito para o parlamento com um porcentual mínimo de votos, desde que consiga entrar na coligação correta.

A democracia brasileira, portanto, tem uma falha em uma parte essencial do seu mecanismo: o parlamento está efetivamente separado da população, pois ela não consegue expulsar ninguém lá de dentro. Por isso, os brasileiros acabam criando expectativas exageradas em relação ao presidente da República. Ao contrário do Congresso Nacional, o presidente é eleito por voto direto majoritário, o que significa que o povo sabe em quem está votando e, portanto, sabe de quem cobrar. Porém, essa expectativa é ciclicamente frustrada, porque nossa Constituição inflada força o presidente a negociar cada passo com o parlamento – uma negociação que é sempre duríssima porque os parlamentares não se sentem igualmente ameaçados pelo próximo ciclo eleitoral. Eles sabem que o voto proporcional em lista aberta deixa um caminho livre para voltarem ao poder mesmo sob o protesto da grande maioria da população. Nosso sistema eleitoral, portanto, permite que os parlamentares concentrem poder sem ter um nível equivalente de responsabilidade.

Sair dessa situação é muito difícil, pois as reformas políticas precisam necessariamente passar pelo parlamento que foi eleito pelas regras atuais. Há também sempre o risco de as reformas irem em uma direção antidemocrática. Por exemplo, esforços em diminuir o número de partidos podem ser positivos por um lado, mas podem terminar por apenas aumentar ainda mais o poder dos dirigentes partidários atuais.

Por esse motivo, eu espero que o novo partido canalize suas forças para uma ampla reforma eleitoral. Em particular, eu estou convencido de que o caminho mais curto seria aprovar o voto distrital em dois turnos para o parlamento. Esse sistema seria simples de explicar à população (já que é essencialmente o mesmo já utilizado nas eleições para o Executivo), reconectaria os eleitores com os políticos e daria chance aos partidos menores (o que de fato não ocorre no distrital de turno único). Um novo sistema eleitoral permitiria que, aos poucos, a própria população melhorasse a qualidade da classe política brasileira pelas vias democráticas.

Em suma, a criação do novo partido resolve um problema de representatividade pontual, mas ele corre o sério risco de ver sua identidade diluída e seu poder fragmentado já no próximo ciclo eleitoral devido à natureza do nosso sistema político. Porém, eles possuem também uma enorme oportunidade: caso consigam canalizar sua energia na direção de reformas de longo prazo, podem colocar o país em um caminho de ampliação da democracia e amadurecimento institucional.

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