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Nick Cave em “Idiot Prayer”
Nick Cave em “Idiot Prayer”| Foto: Joel Ryan/Divulgação/nickcave.com

(para Deia)

Em julho passado, Nick Cave realizou um concerto solitário, apenas ele e um piano, num belo salão do Palácio Alexandra, em Londres. Foi transmitido via streaming depois, com cobrança de ingressos. O evento foi filmado e será lançado nos cinemas em novembro, com cenas exclusivas de mais músicas tocadas pelo compositor na ocasião. Também será lançado na sequência o disco deste show. Quem assistiu sabe o que foi, e um aperitivo disso pode ser conferido no vídeo liberado da música de encerramento, Galleon Ship.

Não foi um show qualquer, mas a culminação de algo muito mais significativo e belo. Voltemos a 2012, quando Nick compunha e gravava músicas para o disco Push The Sky Away, cujo processo de produção foi filmado e se tornou o documentário 20.000 Dias Na Terra. Dentre outras coisas, é um disco refletindo sobre sua necessidade de reinvenção, o que fica mais claro na última música, Push The Sky Away, com versos como: “Se você sente que conquistou tudo o que quis / Se conquistou tudo e não quer mais nada / Você tem de continuar empurrando / Continue empurrando o céu para mais longe”.

O disco é, assim, em suas palavras, “um bebê-fantasma na incubadora e os loops de Warren [seu grande parceiro musical] são suas frágeis e trêmulas batidas cardíacas”. Neste sentido nenhuma outra música representa melhor esse processo do que Jubilee Street, das poucas com narrativa clara, contando a história de uma prostituta de rua, mas que em sentido alegórico simboliza o próprio momento de vida de Cave, como canta no fim: “Eu tenho um feto na coleira / Estou sozinho agora, estou além de recriminações / As cortinas estão fechadas, a mobília se foi / Estou me transformando, estou vibrando, estou brilhando / Estou voando, olhe para mim agora / Estou voando, olhe para mim agora.”

Olhar para o quê, Nick? No que você estava se transformando?

O contraponto da vida

No documentário, uma pista. Disse que a chave para a música é o contraponto. É fácil entender isso com os exemplos que deu, como colocar numa sala uma criança e, logo depois, um psicopata. Percebeu o contraponto? Ou, num exemplo de sua vida pessoal, quando ia a sebos em Berlim nos anos 80 e via figuras pornográficas ao lado de ícones religiosos. As músicas de Cave são exemplos perfeitos disso. Ao lado de melodias de delicadeza inefável há sempre ruídos, barulhos, incômodos, desconfortos, fazendo o contraponto tornando a harmonia complexa, de beleza pouco palatável, mas sempre presente.

Mas assim também é a vida; afinal, seu contraponto inescapável é a morte. Cerca de 18 meses depois deste disco, Cave gravava o sucessor, já em fase adiantada de produção, quando um de seus filhos, Arthur, 15 anos, caiu de um penhasco e morreu. “Estou voando, olhe para mim agora.” Isso teve um impacto brutal não apenas na vida do compositor, mas no novo disco. Duas semanas depois da morte, retornou para revisar o material e é claro que o disco se transformou. Faltava gravar a maior parte dos vocais e assim fez, alterando e acrescentando às letras, colocando referências ao “contraponto da morte” em várias delas, começando pela primeira, Jesus Alone, cuja atmosfera de abandono num deserto é exasperante.

Este período foi igualmente filmado, tornando-se o impressionante documentário One More Time With Feeling, um registro do impacto da morte, do trauma que despenca inteiro e depois se instala aos poucos. Nick Cave foi simplesmente destruído. Tudo o que foi, o que acreditava, ficou em ruínas. O documentário inteiro é muito tenso, em certo momento ele disse que não sabia por que estava se deixando filmar, que jamais teria feito isso antes, mas, agora: “Esta é uma das coisas que perdi, uma das coisas que perdi feio: a sensação de acreditar em mim mesmo. Como se eu tivesse ferrado com tudo. Minha crença nas coisas boas do mundo, em mim, evaporou”.

No plano humano a morte é o contraponto da vida, mas no divino a vida é o contraponto da morte

O disco parece todo “falar” desde esse vazio. E o vazio dói, e dói muito, e sentimos essa dor excruciante em I Need You: “Nada mais realmente importa / Nem hoje / Não importa quanto eu me esforce / Quando você está parado no corredor / E baby, nada / Nada, nada / Eu preciso de você / Preciso / Preciso / Apenas respire, apenas respire / Preciso de você”. Como ver beleza com a morte? Harmonia na dor e sofrimento de quem “fica”? No trauma destruidor? Onde a beleza da vida se tudo morre? No primeiro documentário, 20.000 Dias Na Terra, Nick disse que, nesse jogo de pontos e contrapontos, “se você conseguir entrar no coração da canção e lá ficar, é algo de divino o que acontece, ao menos por alguns momentos”. É o que acredito acontecer neste final de disco, depois da dor dilacerante de I Need You.

No plano humano a morte é o contraponto da vida, mas no divino a vida é o contraponto da morte. A penúltima música, Distant Sky, é este contraponto da eternidade à finitude do tempo. À dor de Nick se contrapõe o consolo do Espírito, na voz angelical da soprano Else Torp: “Vamos agora, meu único companheiro / Parta para o céu distante / Veja o sol, veja-o nascer / Veja-o nascer, nascer em seus olhos”. Depois desta catarse luminosavem a despedida resignada, suave, de Skeleton Tree, que dá título ao disco, onde Nick canta que “está tudo bem agora”. Esse contraponto aparece no filme numa cena singela, mas muito comovente, quando sua esposa e o outro filho, gêmeo do que morreu, apareceram no estúdio e os três se abraçaram, assim permanecendo por segundos.

Embora não tenha parado de trabalhar, entrando em turnê meses depois, Nick não mais conseguia escrever, só voltando a fazê-lo em 2018, depois de, em abril daquele ano, começar um novo projeto chamado Conversations With Nick Cave, em que interagia com a plateia sobre suas músicas. Dali decidiu começar um blog de perguntas e respostas, em setembro do mesmo ano, o The Red Hand Files, em cuja primeira entrada revelou:

“Por um ano foi difícil descobrir como voltar a escrever, porque o centro desabou e Susie e eu fomos lançados para o outro lado de nossas vidas. Éramos uma espécie de forasteiros flutuando no espaço. Mas o que desabou? O que está no centro de nossas vidas? No caso de um artista (e talvez seja o mesmo para todos), eu diria que é uma sensação de maravilhamento. Pessoas criativas em geral têm uma grande propensão para o deslumbramento. Um grande trauma pode nos roubar isso, a capacidade de ficarmos impressionados com as coisas. Tudo perde seu brilho e parece fora de nosso alcance. Estávamos sobrevivendo, mas estávamos sobrevivendo no exílio, no perímetro de nossas vidas, muito além de qualquer coisa que importasse. (...) Encontrei uma maneira de escrever através do trauma, autenticamente, lidando com todos os tipos de questões, mas sem virar as costas para a morte de meu filho. (...) Ao fazer isso, a cor voltou às coisas com uma intensidade renovada e o mundo parecia claro, brilhante e novo. Estou muito feliz com isso. É bom ter um caderno cheio de palavras novamente.”

É daí que surgiu seu último álbum de estúdio, Ghosteen, um disco que em suas palavras no blog: “Às vezes, pode parecer desamparado e sem teto, mas está apontado firmemente para o paraíso, a tripulação está alegre, o mundo sorri e o sol irrompe sobre a borda da terra”. É exatamente isso. Praticamente não há bateria ou percussão neste disco, e os contrapontos aparecem com discrição. É todo etéreo, dividindo-se em duas partes, com a primeira sendo como se fosse o filho falando desde o paraíso, como na explícita Ghosteen Speaks: “Estou ao seu lado, estou ao seu lado / Me procure / Me procure”.

E o pai o encontra na segunda parte, nas três faixas finais, como na que dá título ao disco: “Este mundo é belo / Guardado dentro de suas estrelas / Mantenho isso no meu coração / As estrelas são seus olhos / Os amei desde o princípio / Um mundo tão belo / E o guardo em meu coração”. Seguida de Fireflies: “Somos vagalumes que uma criança prendeu em uma jarra / E tudo está distante como as estrelas / Eu estou aqui e você está onde está”. Encerrando com a mântrica Hollywood: “E estou agora apenas esperando por meu lugar ao sol / É um longo caminho para encontrar paz de espírito / E estou agora apenas esperando minha hora chegar / E estou agora apenas esperando que a paz chegue”.

O contraponto da morte

Enfim chegamos a este concerto solitário de julho de 2020, em que Nick “desconstruiu” várias músicas antigas assim como muitas das recentes, como Galleon Ship, presente em Ghosteen. Compare as versões e perceba: o contraponto foi absorvido, já não “estranha”, “arranha”, “incomoda”. A versão “desconstruída” é simplesmente sublime. O homem que procurava transformação, que empurrava o céu um pouco mais e o viu desabar sobre si pelo contraponto da morte do filho, encontrou a nova forma de ser, uma nova harmonia absorvendo pontos e contrapontos, aprendendo a dizer adeus e esperar. Em uma de suas respostas no blog, de maio deste 2020, Nick escreveu:

“Descobrimos [ele e a esposa] que o luto não é algo que você atravessa, como se tivesse um outro lado. Para nós, o luto se tornou um modo de vida, uma forma de encará-la, onde aprendemos a ceder à incerteza do mundo, enquanto mantemos uma postura de desafio à sua indiferença. (...) Por fim, essa consciência da fragilidade da vida nos levou de volta ao mundo, transformados. Descobrimos que a dor era muito mais do que apenas desespero. Descobrimos que a dor continha muitas coisas – felicidade, empatia, comunhão, tristeza, fúria, alegria, perdão, combatividade, gratidão, temor e até uma certa paz. (...) No final, o luto é uma totalidade. É lavar a louça, assistir Netflix, ler um livro, conversar com amigos pelo Zoom, sentar-se sozinho ou, na verdade, mudar de lugar. O luto é todas as coisas reinventadas através das feridas sempre emergentes do mundo. Ele nos revelou que não tínhamos controle sobre os eventos e, ao enfrentarmos nossa impotência, passamos a ver essa impotência como uma espécie de liberdade espiritual.”

O homem que procurava transformação, que empurrava o céu um pouco mais e o viu desabar sobre si pelo contraponto da morte do filho, encontrou a nova forma de ser, uma nova harmonia

Liberdade espiritual... O filme feito com o show é, segundo o próprio Nick, o final de uma trilogia que inclui os dois documentários citados acima, “e é o seu clímax luminoso e sincero. Idiot Prayer é uma oração no vazio”. O título dado ao show é de uma de suas canções famosas, tocada também, cuja letra revela bem a relação cheia de contrapontos de Nick Cave com Deus. Menos em suas músicas, em que ele mesmo tem certeza que “ali há Deus”, como contou no primeiro documentário e volto a citar: “se você conseguir entrar no coração da canção e lá ficar, é algo de divino o que acontece, ao menos por alguns momentos”.

Como aconteceu com Emily Flake ao assistir à performance ao vivo de Jubilee Street em 2018, tendo escrito sobre esta experiência para a revista New Yorker: “Tendemos a ver música como entretenimento. Mas performances como esta nos puxam firmemente de volta para onde a música pertence – ao reino da experiência espiritual”. É precisamente a uma experiência assim que este concerto Idiot Prayer convida o espectador a viver. E aí não haverá como discordar dos versos da já citada e bela Push The Sky Away: “E algumas pessoas dizem que é só rock and roll / Ah, mas isso te leva direto à sua alma”.

Leva mesmo. E as perguntas de seus fãs no blog comprovam isto. Como esta:

“Eu perdi alguém no ano passado. É um território desconhecido e inexpressável para mim. Eu pensei que estava tudo bem, eu pensei que estava tudo bem... Foi uma passagem suave. Agora, formas e ecos ressoam. Sinto uma presença que vem e vai – uma presença reconfortante, gentil e protetora. Eu não entendo. Eu não acredito em um deus que se senta acima. Sinto uma presença em todas as coisas – algo misterioso e milagroso. Às vezes, olho suavemente para pássaros e árvores e fico profundamente comovido com a vida que zumbe neles. Pois eu amo pássaros e árvores, especialmente os pardais e árvores altas com galhos largos. É estranho se sentir tão conectado e ainda assim ter a sensação de estar tão desconectado. Às vezes estou bem – mais do que bem porque eles estão aqui e eu esqueço que os perdi e minhas memórias mantêm o espaço de todas as coisas que compartilhamos. Minha pergunta é que não sei como entender a experiência da perda. Não é algo com o qual eu poderia negociar. Espero que isso faça algum sentido.”

Ao que Nick Cave respondeu:

“Imprimi sua carta na íntegra, pois ela descreve lindamente a experiência de habitar o reino misterioso e desorientador das nossas perdas. Obrigado por ter cuidado com isso.

O efeito paradoxal de perder um ente querido é que sua ausência repentina pode se tornar um comentário fervoroso sobre o que restou. O que restou ressurge com o tempo, vem da escuridão com uma fisicalidade ardente – uma superpresença luminosa – à medida que nos familiarizamos com este mundo novo e diferente. Na perda, as coisas – animadas e inanimadas – assumem uma intensidade e um significado adicionais.

Eu amo sua frase: ‘Às vezes eu olho suavemente para pássaros e árvores e fico profundamente comovido com a vida que zumbe neles’. Acho que esse sentimento que você descreve, de alerta para o espírito interior das coisas – esse zumbido –, vem de uma compreensão conquistada com esforço da impermanência das coisas e, de fato, de nossa própria impermanência. Esta lição, em última análise, anima e ilumina nossas vidas. Tornamo-nos testemunhas da emocionante emergência do presente – uma série de momentos requintados e ardentes, cada um extinto à medida que o seguinte nasce. Esses momentos mágicos são as joias brilhantes da perda às quais nos agarramos. Eles são seus ‘pardais e árvores altas com galhos largos’.

Pois existe, é claro, um outro lado em que perdemos nossa determinação – baixamos nossa guarda, ou apenas ficamos cansados ​​e descemos para aquele outro mundo, mais escuro e menos adorável, conforme nos desconectamos e nos refugiamos profundamente em nós mesmos.

Rose, esses sentimentos giratórios de conexão e desconexão que você descreve tão bem são as forças opostas da perda que definem nossa experiência vivida. Cartas como a sua fazem uma grande diferença porque muitos de nós vivemos neste reino misterioso de perda – e todos nós encontraremos nosso caminho para lá no tempo certo.”

Como suas músicas, discos e shows fazem uma grande diferença, Nick, para nos ajudar a encontrar nosso caminho para fora do reino das perdas e descobrir que nada foi de verdade perdido. Deus te abençoe, ainda que você acredite que reze no vazio e para ninguém.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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