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Tom Holland em cena de O Diabo de cada dia.
Tom Holland em cena de O Diabo de cada dia.| Foto: Divulgação/Netflix

“e não serão conhecidos os teus vestígios.” (Sl 76, 20)

“Somente na presença da morte ele sentia a presença de algo como Deus”, disse a certa altura o narrador do mal traduzido filme The Devil All The Time (O Diabo de Cada Dia), produzido pela Netflix e que está entre os mais assistidos nas últimas semanas. Mal traduzido porque a ideia do título é explicitar desde o início que absolutamente tudo o que acontecerá na história tem a “mão” invisível do diabo. É mais, portanto, do que uma presença diária, mas ininterrupta que não conhece intervalo entre um dia e outro.

Como disse Padre Pio: “Há tantos demônios por aí, que se pudessem assumir um corpo obscureceriam o sol”. O filme não dá corpo aos demônios, mas destaca suas ações pelas consequências, numa sucessão estonteante de maldades cometidas por personagens aparentemente unidimensionais, mostrados quase que apenas pelo seu lado mau. Mas assim é porque a explicação do que se passa já está dada de antemão e o protagonista de tudo, no fundo, é um só: o diabo.

Embora seja tentador e justificável até certo ponto tentar explicar psicologicamente as ações dos personagens, usando, por exemplo, a psicanálise freudiana para falar da figura paterna no filme; ou lembrar do destino compulsivo herdado pela hereditariedade, segundo Szondi; ou apelar à sincronicidade junguiana para compreender a relação entre eventos aparentemente sem nenhuma relação; enfim, embora se possa enxergar a história por essas e outras perspectivas, fica muito claro desde o início que todas têm de ser articuladas de outra forma e por outra razão: pela ação do diabo, e é sua a ação o tempo todo.

Por que Deus permite, tanto no caso de Jó quanto no do filme, que tanta maldade aconteça?

Com isso, revela-se a arquitetura da maldade que faz supostos acasos e coincidências, muitas nem sequer percebidas pelos personagens, serem dotados de conexão e sentido diabólico muito evidente conduzindo do medo ao desespero e, deste, à morte. Essa arquitetura é descrita pelo narrador, sem quem jamais relacionaríamos muitas das histórias contadas, muito menos os locais onde tudo aconteceu. É prestando atenção ao narrador, que aliás é Donald Ray Pollock, o escritor do livro que se tornou o filme, que o que seria misterioso se torna claro.

Mas só fica claro para o espectador, pois nenhum dos personagens tem esse narrador para lhes mostrar, descrever, até explicar o que se passa. Estão como Jó, sem saber da permissão divina dada ao diabo para tentar desesperá-lo e antes que Deus venha lhe mostrar a razão de tudo. Já o espectador está precisamente na perspectiva do leitor do Livro de Jó, entendendo tudo o que Jó e seus amigos não entendem porque sabemos do “acordo” entre Deus e o diabo desde o início. É o diabo o tempo todo tentando desesperar Jó. Mas por que Deus permite, tanto no caso de Jó quanto no do filme, que tanta maldade aconteça? Eis o mistério da iniquidade que faz com que o diabo seja o rei deste mundo, como mostrou Deus a Jó e como ensinou São João: “Sabemos que somos de Deus, e que o mundo todo jaz sob o Maligno” (1 João 5,19).

Inúmeras obras artísticas retratam o mistério da iniquidade, intrigando-se com isso, lutando contra o desespero a que ela induz. Cito de cabeça, para ilustrar, livros como No Coração das Trevas, de Joseph Conrad, e Sob o Sol de Satã, de Bernanos; filmes como Seven, de David Fincher, A Promessa, de Sean Penn (baseado no livro de Dürrenmatt, de mesmo título), e Onde Os Fracos Não Têm Vez (este baseado no livro de Cormac McCarthy); e seriados como True Detective (especialmente a primeira temporada). Em todos, há um olhar para o mistério da iniquidade que nos alerta para o que Nietzsche bem expressou em Além do Bem e do Mal: “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você”.

O que isso significa? Pois O Diabo de cada dia nos permite responder essa pergunta com nossa própria experiência de assisti-lo. Depois de duas horas de iniquidade, de olhar tanto para o abismo, o que nos acontece? Desesperamos.Não no sentido escandaloso que costumamos considerar o desespero, mas no sentido demoníaco do abismo que de tanto ser olhado nos engoliu. Na cena final em que Arvin pega carona, muito pela maestria com que a câmera demora a mostrar o motorista, quem aí não pensou: “ferrou, outro psicopata!”. Eis a desesperança de que boas ações possam ser comuns e até banais. Já estamos tão intoxicados de maldade que só esperamos por ela, no fim das contas, desesperando do bem.

A desesperança está encarnada quando pensamos no pior com tal facilidade e força que o melhor se torna um “sonho”, como na cena final, com Arvin adormecendo de cansaço no carro e o narrador falando de um futuro bom como se fosse sonho, como se fosse inverossímil diante de tanta desgraça vivida até ali. Essa desesperança que faz acreditar que “não tem saída”, que “não há escolha”, como na justificativa de Arvin para ter matado o pastor pedófilo estuprador, o casal psicopata e o xerife corrupto. Mas será? Ao menos na primeira das mortes, a do pastor, é perfeitamente possível imaginar alternativas, ainda que preferindo, e por isso justificando, a decisão de Arvin. Mas quando a desesperança é maior, parece não restar saída salvo a morte, seja pelo suicídio ou homicídio.

Eis o salário do diabo com sua ação. Não é o medo, mero instrumento para levar ao desespero, nem a ira, instrumento de consecução da morte, mas a desesperança mortífera que, quanto mais perene, mais encarnada estará em indiferença ao sofrimento alheio, tédio pela repetição de desgraças, banalidade do mal que faz parecer natural o que é absurdo. Não é à toa que um dos símbolos mais importantes do filme seja a pistola Luger, típica dos nazistas e que supostamente teria sido a arma com que Hitler teria se matado. É a arma com que Arvin comete os assassinatos e, depois, enterra junto com os restos mortais do seu cachorro sacrificado pelo pai na sua infância, na tentativa desesperada de salvar sua esposa, mãe de Arvin, do câncer.

Já estamos tão intoxicados de maldade que só esperamos por ela, no fim das contas, desesperando do bem

Ao encaixar as iniquidades da narrativa nesta arquitetura da maldade que gerou duas grandes guerras mundiais, genocídios e totalitarismos de toda ordem no século 20, cujo risco de repetição segue vivo, o filme se torna uma imagem do que São Paulo, em sua segunda carta aos Tessalonicenses, disse: que embora o mistério da iniquidade já esteja em ação, isso ainda não foi revelado como obra do Anticristo porque há algo que o detém. No filme, a Luger simboliza esse “algo” que deteve Hitler, assim como Arvin é “algo” assim, detendo o mal praticado pelo pastor, pelo casal psicopata e pelo xerife corrupto.

Esse “algo” é descrito pelo narrador como uma força que conduzia Arvin, levando-o para a casa da infância para ali enterrar simbolicamente todo o mal, com os restos mortais do cachorro e a pistola. Ou seja, como símbolo de esperança sendo recuperada, ainda que não se tenha objeto para ela, ainda que não se possa desejar mais nada, por enquanto, do que ter a “sorte” de uma carona que o permita enfim descansar um pouco durante a viagem. Não importa como e em que esse “algo” se encarne, como na que seria a mãe de Arvin dando comida para um mendigo, ou em sua avó acolhendo órfãos, ou no sujeito do posto de gasolina que acolheu Arvin quando do suicídio de seu pai e a quem disse, no fim, depois de anos, jamais ter esquecido daquele gesto de bondade, que fica sendo um nome melhor para esse “algo”.

O que importa é que isso está tão presente quanto a ação do diabo, ainda que essa ação da graça divina possa parecer menor e insuficiente em contraste com a maldade reinante no filme. Mas, se assim pensamos, isso apenas revela quão pequena é nossa fé, como era a de Arvin, que tentava fazer de tudo para não dormir no fim, com medo do que poderia lhe acontecer. Só com a fé em Cristo podemos recuperar a esperança de que, apesar de tanta maldade, a carona final pode ser “apenas” uma boa ação. E, ainda que não seja, quem tem fé consegue descansar no carro ainda que tenha por motorista um psicopata. Porque o diabo age, mas Deus é mais.

Voltemos ao narrador, quando explicou o que sentia o fotógrafo psicopata quando cometia suas maldades: “Somente na presença da morte ele sentia a presença de algo como Deus”. No caso dele era a presença do diabo que sentia, mas para quem tem fé a presença da morte é a presença da cruz de Cristo, outro símbolo fundamental e repetido em vários momentos no filme. Por várias vezes, Arvin é mostrado no seu quarto contemplando um quadro de Jesus carregando sua cruz, que contém justamente toda a iniquidade do mundo, como as mostradas no filme, inclusive as de Arvin.

Na arquitetura da maldade do diabo, no fim das contas, a cruz é apenas o horror do calvário sem a perspectiva da ressurreição, mas essa arquitetura está contida em outra maior, a de Deus, que um dia veremos face a face. Por enquanto, só por espelhos, como o das obras de arte, como o deste filme, como as parábolas, como esta contada por são Padre Pio:

Por que tem mal no mundo? Ouçam com atenção. Uma mãe está bordando ao tear e seu filhinho perto dela, sentado num banco baixo. O pequeno olha para o trabalho da mãe, mas o vê ao contrário, pelo lado de baixo [por trás, onde só se vê os nós] e lhe diz: ‘Minha mãe! O que está fazendo? Como é feio esse bordado!’ Então, a mãe o que faz? Abaixa o tear e mostra [o outro lado], a parte bonita do trabalho. Todas as cores nos seus lugares e todos os fios compostos na harmonia do desenho. O mal é como o outro lado daquele bordado. Estamos todos sentados num banco baixo.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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