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O padre da piscadinha
| Foto: Wikimedia Commons

“Padre Anísio... Padre Anísio... perdoa a hora, padre... É urgente, urgente!” As luzes foram se acendendo pouco a pouco no casarão. Mal o padre abrira a porta Isabel saiu atropelando as palavras, brandindo uma folha de papel: “não tem mais missa, padre, sem missa como será?” O padre, acostumado aos exageros da mulher, pegou o papel de suas mãos e leu:

Tendo em vista a grave crise sanitária provocada pela disseminação do “novo coronavírus”, determino, em função do cânon 87 §1.º do Código de Direito Canônico, a suspensão de todas as celebrações e eventos religiosos com a participação de povo, da Igreja Católica na Arquidiocese de São Paulo, a partir do dia 21 de março de 2020 e até decisão ou orientação diversa.”

Despediu Isabel sem nada responder, mandou-a para casa, não tinha nada de ter ido ali àquela hora da noite, que tudo poderia ser tratado por telefone. “Mas o senhor não tem celular, como ia fazer? A missa das 7 horas...”, ia a mulher se inflamando quando o padre a cortou, com a voz seca de sempre: “O telefone fixo está funcionando. Agora me deixe que tenho muito o que pensar e rezar. Do amanhã Deus cuida.”

Padre Anísio nunca vira algo assim antes. Nas pestes que acometeram a humanidade a atitude da Igreja foi oposta, não só mantendo os templos abertos, mas com os sacerdotes saindo para consolar os doentes, ajudar as famílias

Novamente sozinho, mirou o extenso corredor parecendo ainda mais longo. Agora é que não conseguiria dormir mesmo. Recolheu-se no escritório, sem saber por onde começar a pensar. Nunca viu algo assim antes. Ao contrário, nas pestes que acometeram a humanidade a atitude da Igreja foi oposta, não só mantendo os templos abertos, mas com os sacerdotes saindo para consolar os doentes, ajudar as famílias. Releu o comunicado do arcebispo: “Os padres celebrem em privado pelo povo nos horários costumeiros e procurem manter o contato com suas comunidades através das mídias, transmitindo também as celebrações ao povo pelas mesmas mídias.”

“Mídias...” Sentiu a ira lhe dominar. O olhar que estava perdido através da janela na noite nublada se voltou para dentro, pousando na imagem de Santa Luzia, a padroeira da paróquia, mais especificamente no prato contendo seus olhos. Ninguém sabia ao certo se quando do seu martírio seus olhos foram sangrados, desfigurados ou arrancados, mas assim entrou para a história esta imagem dos glóbulos oculares sobre um prato, tornando-se ela a intercessora para a cura das enfermidades dos olhos e também das doenças em geral. Sem tirar os olhos dos olhos, padre Anísio rezou, pedindo sua intercessão, ainda com raiva.

Obedeceria as ordens, mas em parte. Procederia às medidas necessárias para disponibilizar a transmissão das missas que rezaria em privado, mas se recusava a suspender os demais sacramentos, isso não. Entraria em contato com quem havia agendado batizados e casamentos para informar que os celebraria sem presença de público, apenas com pais e padrinhos, na igreja fechada ou nas próprias casas das pessoas. Mas ninguém aceitou, todos adiaram. “Não pela pandemia, mas pela impossibilidade de haver convidados”, explicou Isabel. E padre Anísio a tudo escutava, irritado, com o olhar fixo na imagem de Santa Luzia, nos globos oculares sobre o prato.

Recolheu-se em oração, rezando o rosário. Nos dois primeiros mistérios luminosos lhe veio a lembrança de padre João, de uma conversa de quando ele, Anísio, mal havia sido ordenado e se queixava do quanto batismos e casamentos tinham se reduzido a eventos sociais, com raríssimos pais e noivos conscientes do que eram os sacramentos: “Em batizados me incomoda menos, as crianças são inocentes. Mas nos casamentos... Fico como Maria a constatar que não têm vinho, que somente por um milagre...”. Ao que padre João respondeu, com doçura: “Jesus não precisava ser batizado, mas procurou João Batista mesmo assim. Também nas bodas de Caná o milagre não se fez segundo a vontade primeira de Jesus, mas a pedido de sua mãe. Somos, deveríamos ser, a presença visível do Cristo invisível, Anísio. Se para ti tudo isso é cruz, por que reclama?”

A cruz... os olhos no prato de Santa Luzia... Já se vão quantos anos dessa conversa? Ao menos 40. E sem perceber estava no terceiro mistério, imaginando as cenas da atuação pública de Jesus, do anúncio do reino pedindo conversão, do perdão dos pecados, das curas dos doentes... Naquele tempo, os fiéis entravam de maca e tudo pelos telhados para poder tocá-lo. Mas, hoje, quantos questionando as igrejas fechadas, procurando pela confissão, exigindo a eucaristia? Tão poucos... Quando o medo é tamanho, a fé só pode ser ínfima. Súbito, algo se iluminou por dentro, como se escutasse padre João dizendo, rindo: “Por que você não entra pelo telhado dos fiéis?”. E assim tentou. Passou os dias seguintes, meses até, visitando as casas. Poucos o receberam, é verdade, mas a quem abria suas portas os deixava depois confessados e comungados.

Até que o inevitável aconteceu. Estranhou não sentir o cheiro do café pela manhã, nem o gosto do pão. No dia seguinte, a primeira febre e, no terceiro, uma falta de ar repentina. Internado, precisou ser induzido em coma horas depois. Estava com apenas 25% de sua capacidade pulmonar, além de ser do grupo de risco com seus 74 anos. O prognóstico não era nada bom. Isabel e outros tentavam a todo custo saber mais sobre sua condição, mas poucas notícias eram dadas pelo hospital, abarrotado de pacientes. A única coisa que conseguiu descobrir é que padre Anísio aceitou o tratamento com muita calma, dizendo confiar nos médicos, que estava em paz com a vontade de Deus e pediu apenas para que seu terço não fosse retirado de suas mãos durante o coma. E assim foi feito.

Quando o medo é tamanho, a fé só pode ser ínfima

Isabel organizou uma novena a Santa Luzia e uma corrente ininterrupta de oração do rosário com paroquianos. Eram poucos no começo, mas, com o passar dos dias, foi crescendo consideravelmente, em número maior do que o padre jamais imaginaria. Durante os dez dias de coma, as enfermeiras disseram que o padre parecia brilhar, cada dia um pouco mais iluminado. E também sorria o tempo todo, apesar do tubo do respirador. Depois de despertado, riu, como há muito tempo não ria, ao lhe contarem isso. Nunca viria a revelar o que vivera durante aqueles dias do coma, apenas dizia, brincando, que, se tinha vivido o milagre da Transfiguração, não poderia fazer diferente dos apóstolos no versículo 36, do capítulo 9, do Evangelho de Lucas.

Antes de ser transferido para o quarto, fez dois pedidos. O primeiro, aos internados conscientes e aos parentes dos demais inconscientes, se gostariam que os doentes recebessem o sacramento da Unção dos Enfermos. Todos quiseram. Segundo, aos médicos, se permitiam que rezasse uma missa dentro da UTI. Aceitaram. Isabel levou os paramentos, mais a imagem de Santa Luzia, conforme pediu. Do leito, usando a mesinha de refeições, improvisou um altar com a patena, o cálice, as galhetas, a imagem da santa e um crucifixo banhado em ouro. A missa foi breve, sem homilia, mas comovente. Semanas depois uma das enfermeiras lhe visitou para dizer que desde o início da pandemia, foi a primeira vez que nenhum dos que estavam internados naquele dia da missa morreram, todos já tinham recebido alta.

Ao voltar para casa, retomou as visitas aos paroquianos e, agora, como estava imune, muitos mais abriram suas portas. Em pouco tempo não havia casa no bairro em que não houvesse entrado, confessado quem quis ser confessado e rezado missas particulares em todos os lares, como fizera no hospital. E desde então não há vez em que, ao fim do rito da comunhão, antes de elevar a patena e a hóstia para dizer “Provai e vede como o Senhor é bom; feliz de quem nele encontra seu refúgio. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, padre Anísio não mire sorrindo os olhos de Santa Luzia, devolvendo-lhe uma piscadinha.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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