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Adolf Hitler falando ao Reichstag, em dezembro de 1941
Adolf Hitler falando ao Reichstag, em dezembro de 1941| Foto: Reprodução

Se você vem me acompanhando nas últimas semanas, leitor mentalmente quarentenado, vai me entender por dizer que a festa em Paris nos loucos anos 1920 era vivida “no ar”. Não havia lugar, todo canto virava um convescote apenas por se estar ali, o que parece ser divertido, mas quando olhamos para o chão daquela geração perdida, onde os pés estariam firmados, nada vemos senão um abismo que alguns conseguiam desviar o olhar, voltando a beber e aproveitar a festa antes que fossem engolidos pelo vazio existencial. Era como se vivessem dentro de um circo, festejando como trapezistas se equilibrando numa barra de esperança sem cordas nem rede de segurança por baixo.

Um trapezista de circo, como Abel Rosemberg, o protagonista de O Ovo da Serpente, de Bergman, que passa o filme todo tentando escapar do mesmo abismo bebendo, mas sem sucesso. Da cena de abertura, encontrando o irmão que se suicidou, passando por todas as demais o mostrando em casas, bares, cabarés, escritório, becos escuros por onde andarilha sem rumo, vemos Abel desorientado, testemunhando coisas estranhas, violência e fome, sem conseguir entender nada, apenas pressentindo que algo de muito errado e perigoso estava se desenrolando, o qual só podia temer, tentando fugir pela bebida daquele abismo que a certa altura tem seu nome revelado, quando ao mandar uma das prostitutas com que cruzou pelas ruas para o inferno, escutou em resposta: “Onde você acha que estamos?”

O inferno era a Berlim de 1923, mais especificamente no mês de novembro, nos dias anteriores à Hitler tentar dar um golpe de Estado em Munique, chamado Pustch da Cervejaria. A Alemanha como um todo estava imersa no caos. Depois de 4 anos de guerra, saindo não apenas derrotada, mas humilhada pelo Tratado de Versalhes, mais 2 anos da pandemia da gripe espanhola, a pobreza no país era dramática (há uma cena de famintos cortando um cavalo que havia morrido para poderem comer carne) e a perspectiva de futuro era sombria, quando existente. Como disse o narrador, no início: “Todos perderam a fé no futuro e no presente.” O que significa dizer, nas palavras do detetive, personagem central da obra: “Todos têm medo. Nada funciona direito, exceto o medo.” E é esse medo “funcional” que é retratado no filme envenenando o ar, contaminando as mentes e corações.

Quanto tempo somos capazes de resistir a um medo constante, crescente e imparável? Estamos aí sendo testados justamente nisso. A pandemia se arrasta no país, o tal do pico ninguém sabe quando vem, se já veio, quando passará. Enquanto isso, medidas restritivas destruindo a economia, justificadas apenas pelo medo, foram tomadas há meses, sem que se saiba como retomar a normalidade, nem quando. Seu Dória, o Científico, esta semana apareceu com um “plano inteligente” de retorno. Ué, antes o plano de isolamento não era inteligente? Enfim, incertos no presente, com a fé no futuro sendo perdida, todos estamos com medo. Nada funciona direito, exceto o medo. E as distrações da realidade, como as diversões virtuais do “fique em casa”, vão se transformando em parte da doença, deixando-nos paralisados. Será preciso sair de casa em algum momento para trabalhar e pagar a ilusão de segurança, ao menos de algum alívio.

No fim do filme (sim, haverá spoilers, siga por sua conta), mostra-se uma série de experimentos científicos para avaliar a resistência mental do ser humano ao medo constante, ao stress e coisas assim. O mais interessante é o feito com uma mulher de 30 anos, que aceitou cuidar de um bebê doente que não parava de chorar. Em um dia ela já estava à beira do esgotamento nervoso, horas depois sua compaixão diminuiu, logo caindo num estado de depressão. Não demorou muito e abandonou o bebê à própria sorte. Por fim, veio o impulso de calar a criança, matando-a; o que fez. Os demais experimentos mostrados dão o mesmo resultado: desequilíbrio emocional, violência e morte.

No discurso final do médico, ele afirma que uma sociedade que vivesse por 10 anos nesse estado de incerteza e angústia, apatia e raiva, estaria pronta para uma revolução, sendo liderada por algum sujeito forte que aparentasse dar a ordem e o sentido que por anos todos ansiavam. Em 1923, Hitler era visto como um tolo pelas autoridades alemãs que contiveram sua tentativa de golpe de Estado, mas dez anos depois ele venceria, sendo exatamente o líder descrito pelo médico, o que faz com que o filme que parecia ser uma distopia seja, em verdade, uma história realista. Daí o significado do título, explicado pelo mesmo médico: “qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpente. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado.”

A atuação de David Carradine no papel de Abel é magistral nessa cena, nada falando (fala pouco no filme todo), tudo sendo comunicado por sua expressão facial aterrorizada com a revelação pelo médico do horror do abismo totalitário sendo gestado e em cujo ovo ele vivia. Não à toa os anos e décadas seguintes viram surgir as grandes distopias literárias como Nós (1924), de Evgueny Zamiatin; Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley; A Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1948), de George Orwell; Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, para citar as mais famosas, retratando a serpente quando sai do ovo. Lê-las hoje é perceber que mais do que distópicas, foram e são proféticas. Mas “nosso” filme aqui retrata o prólogo da distopia totalitária, quando o medo ainda é maior do que o ódio diante da incerteza, do caos social, dos radicalismos ideológicos - coisa que não preciso apresentar aqui, basta o leitor acessar o Twitter ou a imprensa para constatar que vão capitulando ao radicalismo até os moderados, transformando-se nos bombeiros da obra de Bradbury, citada acima, que em vez de apagar incêndios os causavam.

Sim, eu sei, pode parecer grande exagero, histeria, afinal, se estamos todos muito alertas contra tudo isso, então jamais isso aconteceria de novo etc. Ou seja, temos fé na democracia, tal como o detetive do filme que, no fim, tirando sarro do fracasso de Hitler em 1923, disse: “Herr Hitler e sua gangue subestimaram a força da democracia alemã.” Mas quando o abismo é nosso chão, vale o alerta de Nietzsche: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.” Como não se tornar um monstro? Continuo na semana que vem.

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