Estou cá a pensar com aqueles dois neurônios que todos temos e que aliás proponho, via emenda constitucional, deixem se ser chamados Tico e Teco para serem referidos como sendo um cabo e um soldado. Cá a pensar no que diacho as gentes querem realmente dizer quando falam em guerra cultural. Você sabe, leitor belicoso?
O senso comum atual sobre cultura não vai muito além de considerá-la em sentido sociológico e antropológico, ao menos assim me parece aqui da minha trincheira. Ou seja, considera-se cultura como sendo um conjunto e sistema de crenças, valores, comportamentos, bens e artefatos que caracterizam um grupo, uma etnia, uma região, uma sociedade qualquer. Aliás, é o que consta da nossa Constituição Federal, no seu artigo 216, dispondo ser cultura aquilo que se refere “à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
Partindo desta premissa, uma guerra cultural não poderia ser outra coisa senão um confronto entre esses “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Creio não errar ao identificar, em linhas gerais, os conservadores e progressistas como sendo os principais grupos formadores da sociedade brasileira atual que estão em confronto. Como (ainda) não chegamos ao ponto de um conflito armado, precisamos entender essa guerra no sentido explicado por Eugen Rosenstock-Huessy em sua obra A Origem da Linguagem: toda guerra começa com uma recusa de escutar o “inimigo”.
Ou seja, quando nos tornamos surdos aos “de fora” e só temos ouvidos ao que vem “de dentro” do nosso grupo. Isso é fácil de entender hoje em dia pela facilidade com que criamos nossas “bolhas culturais”. Quando o afastamento e o “bloqueio” nas redes sociais de qualquer um que pense ou diga qualquer coisa diferente daquilo que você defende, seja algo absurdo ou não, mentiroso ou não, torna-se uma “solução” para você, até algo admirável de se fazer, ei-lo transformado em um soldado cultural, imune ao que vem “de fora” de sua bolha, o que causa, por consequência, uma hipersensibilização ao griteiro dos que estão “dentro” dela.
Agora, sejamos honestos. Quando nos habituamos a achar certo não dar ouvidos ao “inimigo”, por que consideraríamos errado não lhe dar voz se e quando tivéssemos o controle dos meios e canais de divulgação das vozes na sociedade? Se formos honestos, reconheceremos que muito provavelmente não só não lhe daremos voz como acharemos isso a coisa mais certa a ser feita. Isso não significa necessariamente calar, censurar, perseguir. Não quando se conquista a hegemonia sobre esses meios, sendo os mais importantes atualmente as redes sociais, o sistema de ensino, a mídia e o mercado editorial. Nesse caso não será preciso outro esforço que não seja simplesmente ignorar, não dar atenção, no máximo tratar como maluquice o que não lhe parecer espelho para não precisar sequer refutar nada e, com isso, acabar lhe dando voz. Em palavras internéticas, fingir que não viu “para não lhe dar tráfego”.
Foi o que aconteceu, não de modo perfeito, mas quase, no Brasil dos anos 1990 e início do século 21, com o predomínio do que se convencionou chamar de uma “cultura progressista” hegemônica na mídia, universidades e mercado editorial, sendo que era muito difícil e raro encontrar vozes divergentes ali presentes. Esse domínio ainda é evidente nesses meios, mas nem de longe com a mesma força.
Mas o “ovo da serpente” da censura, da perseguição progressista, foi quebrado quando aquelas vozes divergentes conquistaram espaço e ameaçaram “roubar” a hegemonia. Isso aconteceu no “reino” das redes sociais, quando uma visão de mundo conservadora e outras análogas ganharam predomínio, o que por consequência “exigiu” a tomada de ações autoritárias das empresas tomadas por uma visão de mundo progressista para diminuir o alcance de publicações, suspender contas, apagar postagens e banir perfis de quem defendia ou fazia proselitismo de algo diverso ou oposto ao “senso comum progressista”, com a justificativa de que seria a prática de um “discurso de ódio”, algo que só faz sentido considerando-se inaceitável que alguém faça uma defesa ou proselitismo daquilo que não se poderia “dar ouvidos”. O mesmo “ovo da serpente” está presente na bolha conservadora, é claro. Ou alguém aí dirá que os sujeitos que fazem com recorrência listas que circulam por aí “informando” quem seriam os “falsos direitistas” ou “falsos conservadores” são do tipo que dão ouvidos a quem não lhes sirva de eco?
Por isso, não sei se concorda, leitor belicoso, mas para mim a verdadeira guerra cultural não está acontecendo entre conservadores e progressistas, mas dentro de cada um de nós. É difícil não acabar sendo arrastado para a trincheira de alguma dessas bolhas, tornando-se um soldado surdo e gritador a defender seja o que for. Mas um autoexame me parece suficiente para nos fazer tomar consciência de que por aí não haverá bom fim, seja lá qual será o vencedor da guerra. O único bom fim possível só pode surgir como possibilidade quando despertamos desses fetiches e tomamos consciência de que cultura não é apenas “pertencer” a uma determinada cultura, mas muito mais do que isso. O que seria?
Precisarei de mais tempo e espaço para responder, por isso continuo na semana que vem.
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