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Na coluna passada tentei entender um pouco melhor o que seria a tal da guerra cultural sobre a qual tantos falam e terminei afirmando que “a verdadeira guerra cultural não está acontecendo entre conservadores e progressistas, mas dentro de cada um de nós”. Prometi tentar me explicar para além do clichê, e cá estou, mas confesso sofrer por considerar quase inútil. Porque falar sobre isso é reconhecer que a maioria de nós já perdeu essa guerra. E poucos parecem interessados em retomar a luta. Mas como esta coluna é escrita por um náufrago para náufragos, então…

Para além do sentido sociológico e antropológico, cultura também tem outro sentido muito mais importante e decisivo, relacionado ao espírito, à alma, ao mundo dos valores. E só por me referir a estes termos já é possível perceber o quanto perdemos, pois quem aí saberia responder, com facilidade, o que é espírito, alma e valor? Deste não conseguimos ir muito além de uma questão de gosto; a alma tomamos como significado de psique, que é outra coisa que tampouco sabemos definir com precisão; e o espírito se tornou um saco de gatos fantasmas.

Lembro de quando estava na escola – não precisamente com que idade, creio que entre os 11 e os 13 anos – e ter tido um insight escutando um professor falar sobre estarmos vivendo em uma época de “inversão de valores”. Tal expressão era recorrente na cultura em torno, já havia lido e escutado em diversos lugares, sempre concordando, pois parecia mesmo que estava tudo “virado do avesso”. Mas aí veio uma pergunta óbvia e o insight consequente: “Ok, mas quais os valores originais que teriam sido invertidos?” Foi aí que me dei conta de que não sabia quais eram – nem mesmo o que era valor eu sabia –, tinha apenas a percepção de que, fossem o que fossem, já tinham sido invertidos tantas vezes que mesmo se eu soubesse “desinvertê-los” não conseguiria reconhecê-los para saber quando parar o serviço.

E agora, José?

Eis aí uma referência cultural que, caso o leitor a reconheça, comunica mais e melhor o sentimento de quem toma consciência do próprio estado de miséria cultural. É como acordar num deserto sem saber como ali chegou, o que fazer e para onde ir, sentindo-se abandonado e desorientado, que é a experiência expressada com maestria por Drummond em seu poema famoso. Ele não lhe dará um rumo na vida, mas certamente o acolhe, fazendo o sentimento de abandono diminuir, ainda que só um pouquinho. Afinal, ter ao menos alguém que saiba o que é se sentir assim é consolador, o que é uma das finalidades da arte, aliás. Se esse é o seu caso, o de um náufrago cultural, então certamente tem apenas um único critério de valor a servir de guia neste primeiro momento: seu gosto pessoal.

Acho que não sei quem sou,/ só sei do que não gosto.

Eis aí outra referência cultural que, caso o leitor a reconheça, comunica mais e melhor o sentimento de quem só tem esse critério do gosto pessoal para se orientar na vida. Quando eu era adolescente, muito do que sentia diante do que vivia, muito do meu mundo interior, encontrava expressado nas letras e canções da Legião Urbana, especialmente neste verso. Eu não sabia se o que gostava era por gostar mesmo ou porque era o que os amigos gostavam, mas sabia perfeitamente que quando não gostava de algo, era por não gostar mesmo. Não sabia quem eu era, mas também sabia que não era o que não gostava. É pouco, muito pouco, eu sei, mas ao menos era um princípio de autoconhecimento, conhecimento do que ia em minha alma.

É uma palavra que já apareceu várias vezes, mas não com muita clareza. Por exemplo, como aquilo que os tempos atuais perderam ou que não se harmoniza com a civilização.(…) De todas as singularidades dessa palavra alma, porém, a mais especial é que jovens nunca a conseguem pronunciar sem rir. (…) Como, pois, a descreveremos ? (…) Por mais que tudo pareça compreensível e acabado, é acompanhado de uma obscura sensação de incompletude. Falta equilíbrio, e o ser humano avança, oscilante, como um aramista. E avançando pela vida, deixando atrás de si coisas vividas, as coisas ainda por viver, e as já vividas, formam uma parede, e o caminho dele finalmente parece o de um verme na madeira, que se pode mover à vontade, até voltar atrás, mas sempre deixa em seu rastro o espaço vazio. E por essa horrenda sensação de um espaço cego e amputado atrás de tudo o que está pleno, por essa metade que sempre falta quando tudo já está inteiro, percebemos finalmente o que é isso que chamamos alma.

Mais uma referência cultural e aí vou apostar que poucos a conhecem. É um trecho da obra prima de Robert Musil, O Homem Sem Qualidades. Quando a li pela primeira vez, quão pouco entendi, mas desse pouco, como neste trecho, quanta coisa não me serviu, não apenas como espelho do que vai por dentro, mas para o que me transcende infinitamente, para o que eu possivelmente jamais conseguiria expressar. A alma descoberta por essa sensação horrenda de um espaço cego e amputado, eis uma imagem assustadora, mas precisa, tanto quanto os versos de Drummond e Renato Russo.

Talvez você esteja incomodado por parecer que estou a igualar Drummond, Musil e Renato Russo. Mas não estou, estou falando de mim, tomando-me como exemplo do que estou tentando mostrar. Cultura, para além do sentido sociológico e antropológico, exige cultivo, como o próprio nome já indica. Cultivo do quê? Primeiro, do que você já cultiva, ainda que sem perceber, seja Legião Urbana ou Mozart. Desses exemplos pessoais, Renato Russo tem valor para mim, independente do seu valor universal, porque me ajudou a tomar consciência do meu espaço cego e amputado, cuja sensação horrenda desaguava sempre no “e agora, José?” E sem Drummond e Musil eu estaria até hoje só sabendo do que não gosto.

Eis, enfim, a minha guerra cultural. Um náufrago em busca de uma resposta à pergunta do poema de Drummond, à procura de um propósito, que só encontrei quando os valores que fui conhecendo e discernindo pela cultura que não apenas consumia, mas cultivava, alimentando e iluminando a minha alma, conduziu-me, ao mesmo tempo, para mais dentro e também para fora de mim, por mais paradoxal que isso pareça, mas que é perfeitamente compreensível quando o sentido espiritual se faz presente. Mas aí, desconfio, tudo isso ficou abstrato demais, não ficou? Pois é, provavelmente porque você também perdeu essa guerra cultural, talvez já tenha nascido derrotado nela, como eu acho que nasci.

Mas isso não significa que não seja possível começar ou retomar a luta. É do que tratarei na semana que vem, analisando o caso do psicólogo canadense Jordan Peterson, que suponho você conheça ao menos de nome. Até lá, espero tenha percebido como foi só começar a falar do que vai acima para escaparmos um pouco daquela outra guerra cultural envolvendo progressistas, conservadores, socialistas e todos os outros ismos conhecidos e por inventar. Afinal, ser isso ou aquilo não esgota quem você é, ao menos não deveria. E se você não consegue ser nada além disso, mas gostaria de ser, então bem-vindo à consciência do naufrágio cultural que padecemos, em que nos descobrimos homens (e mulheres, porque hoje em dia o óbvio precisa ser dito) no sentido expressado por Thomas Wolfe em seu ensaio Então isto é o homem:

Isto é o homem: um escritor de livros, um anotador de palavras, um pintor de quadros, um inventor de mil e uma filosofias. Apaixona-se por idéias, ataca com desprezo e desdém o trabalho de outros; acha o caminho, o verdadeiro caminho para si próprio e considera todos os outros falsos – embora entre os bilhões de livros sobre as prateleiras não haja um que possa dizer-lhe como dar um único e efêmero suspiro. Ele faz histórias das coisas do mundo, conduz o destino de nações mas não conhece sua própria história, e é incapaz de conduzir seu próprio destino com dignidade e sabedoria por dez minutos consecutivos.

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