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Quem olha para dentro, desperta
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“Como um garoto sensível, reagia à violência ao meu redor internalizando tudo. Meu único refúgio era a música, e eu desapareci totalmente para dentro de paisagens internas que se abriram para mim.” Pelo nome talvez você não saiba quem é Max Richter, autor deste trecho entre aspas, mas se já assistiu a filmes como A Chegada, Ad Astra, Ilha do Medo, ou seriados como The Leftovers e My Brilliant Friend, certamente já escutou várias de suas músicas que fazem parte das trilhas sonoras destas e outras obras para cinema e TV.

Neste período complicado em que vivemos, com o medo imperando e a raiva transbordando, a melhor reação é esse voltar para dentro, para esse refúgio onde encontramos essas paisagens internas que todos comungamos. A música serve para nos conduzir para esse mundo interior e Max é especialista neste tipo de jornada.

Em 2004, incomodado com a guerra no Iraque, com a sociedade justificando-a, Max gravou um disco de protesto contra a brutalidade política, social e pessoal. Calma, eu sei o que você está pensando, “Ih, lá vem o mimimi “imagine all the people” pela paz”, mas não, não se trata disso.

É um protesto pacífico, sem dúvida, e sutil, bastante sutil, contra a violência. Mas não por confrontá-la, não por tentar “iluminar” as pessoas sobre o quão errado a guerra seria ou coisas assim. O que Max Richter fez em seu maravilhoso The Blue Notebooks é, na verdade, calar-se para poder escutar.

A primeira faixa, que leva o título do disco, não dura mais do que 1min20s, com um piano delicado acompanhado da declamação pela atriz Tilda Swinton de um trecho do diário de Kafka escrito durante a Primeira Guerra Mundial, como se o datilografasse: “Todo mundo carrega um quarto dentro de si. Esse fato pode ser comprovado pelo sentido da audição. Se alguém anda rápido à noite, quando tudo ao redor ficar quieto, e algo atiça seus ouvidos e ouve, por exemplo, o ranger de um espelho não firmemente preso à parede.”

Escutemos, pois, o ranger do que não está firme, o ranger da incerteza do futuro, o ranger da angústia a nos devorar, que se nos abre a paisagem interna da desolação no lamento composto na famosa e belíssima On The Nature Of Daylight, presente em tantos filmes e seriados.

Na comemoração de 15 anos do lançamento do disco, várias faixas bônus foram incluídas, dentre elas, duas novas versões dessa música. Uma orquestrada e outra, ainda mais magistral, que é a que está na trilha do ótimo filme Ilha do Medo, de Scorsese, com a voz de Dynah Washington cantando This Bitter Earth, música dos anos 60, sobre a base de On The Nature Of Daylight, que merece link à parte, cujos versos dispensam comentários, especialmente as duas últimas estrofes:

Esta terra amarga

Senhor, esta terra amarga

Quão bom é o amor

Que ninguém compartilha?

E se minha vida é como o pó

Que esconde o brilho da rosa

Quão bom eu sou?

Só o Céu sabe

Em seguida vem o interlúdio delicado de Horizon Variations a nos acompanhar nessa noite interior que nos deixa como que no topo de uma montanha a mirar o horizonte prestes a amanhecer em Shadow Journal, quando a voz de Tilda retorna para citar um trecho de At Dawn, de Czeslaw Milosz, que diz: “Quão duradouro, como precisamos de durabilidade. O céu antes do amanhecer está encharcado de luz.” E a luz nasce reverberando por uma paisagem que se ecoa como numa igreja, em Iconography.

Vem novo interlúdio com Vladimir’s Blues, como que nos acompanhando numa caminhada por essa paisagem, levando-nos à meditativa Arboretum, com Tilda voltando ao diário de Kafka, citando esta entrada de 6 de novembro de 1918: “Como um caminho no outono / Que mal é varrido, já está coberto por folhas secas”.

E ela segue em Old Song, deixando-nos num quase silêncio ou, em outras palavras, na plena paz que se segue ao aquietar dos ruídos, daquele ranger angustiado. Então, é como se retornássemos àquela igreja com Organum e a paisagem se amplia, transbordando porque transcendendendo, deixando-nos entregues à contemplação de The Trees, com Tilda recitando um trecho da poesia de Misloz contida em sua obra The Hymn Of The Pearl:

Quando Thomas trouxe a notícia de que a casa em que nasci não mais existe

Nem o nome, nem o parque inclinado para o rio

Nada

Tive um sonho de retorno

Multi-colorido

Feliz

Eu era capaz de voar

E as árvores eram ainda mais altas que na infância

Porque vêm crescendo durante todos esses anos desde que foram cortadas

Melhor imagem da riqueza da vida interior não poderia haver. Nada se perdeu para quem ali se refugia. Não há mortos, apenas vida eterna capaz de realimentar aquela que só padece, aquela do lado de fora, do mundo exterior para onde temos de voltar e que em nada se modificou. Mas ninguém é o mesmo quando alimenta e se alimenta de vida interior.

Quando Max Richter compôs esse disco, meditava sobre esses trechos de escritos de Kafka e Misloz, mas também em outros, como este de Jung: “Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta.” É isso que esse disco pode fazer para quem realmente o escute, calando-se.

A última faixa, Written On The Sky, despede-nos com um belo solo de piano feito sobre a estrutura da harmonia de On The Nature Of Daylight, transfigurando o peso do lamento em leveza do contentamento de que sairemos com mais do que entramos, com algo que não apenas consola, mas dá sentido ao sofrimento e que ainda que o percamos, sabemos que bastará retornar para dentro para re-encontrar esse reino que está neste mundo, mas não é deste mundo.

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