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Hopper e Eleven na terceira temporada de Stranger Things.
Hopper e Eleven na terceira temporada de Stranger Things.| Foto: Divulgação/Netflix

Eu sei, eu sei, você está aí afogado nas notícias sobre a reforma da Previdência, os vazamentos de supostas mensagens da Lava Jato, mas me permita falar de coisas mais relevantes que de tão raramente tratadas acabaram se tornando, infelizmente, stranger things. Sim, não consigo não escrever sobre a terceira temporada recém-lançada deste seriado. Já digo por quê. Antes, uma pergunta: não assistiu ainda? Então, vaze a jato agora porque darei spoilers daqui a três frases. Obrigado, de nada.

Já escrevi por aqui sobre a segunda temporada e, como a nova aprofunda a “forma da perda inevitável da inocência e as tentativas de recuperá-la", faço deste texto uma continuação daquele também. Agora esta forma ficou ainda mais explícita pela alegoria criada com o monstro “devorador de mentes”. Se nas duas primeiras seu hospedeiro foi Will, uma criança inocente, na atual é o jovem Billy, que de inocente não tinha mais nada, mas que ao final a recuperou, quando Eleven conseguiu “devolvê-lo” à criança que foi e ao amor de sua mãe, algo que estava soterrado pelo drama familiar vivido logo depois, com o pai abusivo que levou sua mãe a abandoná-lo. Por isso a alegoria foi completada, retratando todo o processo de perda e não apenas tentativa, mas efetiva restauração da inocência.

A perda da inocência é inevitável, não acontecendo apenas por algo traumático, como foi para Billy, mas também pelo desenvolvimento natural do processo de crescimento do ser humano. Como começou a acontecer com Will que, ressentido pelo fato de os amigos não mais verem graça em brincar como antes, decidiu “destruir” o que tinham. Ou, então, quando vem a primeira desilusão amorosa, como no caso de Eleven ao perceber que Mike estava mentindo, o que a levou a romper o namoro, sendo todo aquele processo de “empoderamento” posterior menos uma solução do drama do que uma fuga da dor e da confusão. Seja o ressentimento, a mentira, a maldade, seja o que for, alguma coisa acaba “entrando por debaixo da pele” e nos “devorando a mente”.

O que Eleven conseguiu fazer por Billy foi levá-lo justamente ao momento em que esse “algo”, que é o ressentimento imenso pelo aparente abandono e rejeição da mãe, contaminou a sua alma e aos poucos o devorou, transformando-o no sujeito vaidoso e egoísta que pouco se importa com os outros, apenas consigo, e que seguia no rumo de se tornar uma má pessoa, algo potencializado pelo monstro que assim o tornou de fato. A alegoria criada com o monstro nos ajuda também a enxergar o jeito errado de lidarmos com as dores de crescer, que é como Hopper agiu com Eleven, tentando “parar o tempo”, como confessou na sua bela carta escrita para a filha: “Mas eu sei que você está envelhecendo, crescendo, mudando. E eu acho… se eu for realmente honesto, que é isso o que me assusta. Eu não quero que as coisas mudem. Então, eu acho que talvez seja por isso que eu vim aqui, para tentar talvez... parar com essa mudança. Voltar o relógio. Fazer as coisas voltarem a como eram”. Que pai não gostaria disso também? Mas é inútil, claro, e isso apenas piora a situação, como aconteceu ali.

A restauração da inocência acontece na sua essência, que é a bondade. Bondade, no adulto, mesmo jovem, significa integridade

Que fazer, então? Qual é o “jeito certo” de lidar com essas dores de crescimento? Mais uma vez a alegoria criada nos ajuda aqui. É Billy quem nos ensina como vencer o “monstro”. Primeiro, confessando a verdade sobre si, sobre quem era e quem veio a se tornar. A lembrança da mãe o levou a isso. Billy não precisou dizer em voz alta, nem teve tempo para isso, apenas tomou consciência e seus atos na sequência falaram por si. Essa mesma confissão Hopper fez em sua carta ao dizer: “Sentimentos. Jesus. A verdade é que, por muito tempo, eu esqueci o que eles eram. Eu fiquei preso em um lugar – em uma caverna, você poderia dizer. Uma caverna escura e profunda”. Outra coisa não foi também o que Jonathan fez ao reconhecer que a namorada estava certa e, com isso, retomando o namoro que havia sido terminado, assim como quando Mike e Eleven, ainda que de forma desajeitada, confessaram amarem-se um ao outro.

Segundo, tendo a coragem de agir conforme a verdade reconhecida. Billy comete o ato heroico máximo ao morrer para salvar Eleven, mas não sem antes de pedir perdão à irmã pelo mal que lhe causou. Hopper, além de ato heroico equivalente, terminou a sua carta de maneira magistral: “Então, quer saber? Continue crescendo, garota. Não me deixe impedi-la. Cometa erros, aprenda com eles e, quando a vida lhe machucar – porque ela vai –, lembre-se da dor. A dor é boa. Significa que você está fora daquela caverna”. A sinceridade exigida nesses momentos, os sacrifícios feitos para consertar os erros, restaurar os relacionamentos, a vulnerabilidade inevitável de quem arrisca ser machucado de novo, isso não apenas reaproxima os personagens entre si, mas os torna mais nobres, dignos, heroicos até, ainda que just for one day.

A partir daqui a inocência pode ser restaurada, mas não na sua pureza, pois a inocência manchada nunca mais voltará a ser pura, ainda que possa ser “limpada”. A restauração acontece na sua essência, que é a bondade. Bondade, no adulto, mesmo jovem, significa integridade. Integridade que, antes de ser moral, e por isso mesmo será moral, é uma restauração existencial a partir da instalação na verdade confessada que faz com que todas as partes soltas ou rompidas ou negadas ou machucadas que nos formam sejam de novo reintegradas numa forma harmônica que será boa, bela e verdadeira e jamais separada do próximo. Ao contrário, só há integridade na comunhão criada pelo amor ao próximo.

Nada simboliza isso melhor do que a cena antológica de Dustin cantando com sua namorada, com todo mundo ouvindo pelos rádios-comunicadores, a música tema do famoso filme dos anos 1980 A história sem fim. Ali todos descobrem a verdade sobre o namoro deles, tipicamente infantil, tipicamente inocente, o que acontece no clímax da história, transfigurando completamente a gravidade do que se passava, a seriedade do que viviam, da tragédia que se consumaria a seguir, mas que já foi contida e absorvida numa forma maior de uma esperança que reúne a todos e transcende o destino trágico de Hopper, visto não como um fim, mas como mais um capítulo de uma história que não tem fim porque é eterna.

Ao nos colocar como espectadores participantes da intimidade daquele casal de crianças, o seriado nos instalou no que o filósofo Louis Lavelle bem disse em sua obra O erro de Narciso: “Quem comunica sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que traz em si e que é o mesmo para todos.” É por isso que o final desta temporada é tão comovente, cumprindo uma das funções da arte que não apenas é capaz de nos consolar, mas de nos religar a esse universo espiritual, fonte de nossa esperança de que a vida tem sentido para além e apesar da morte, e que tudo valeu, vale e valerá a pena desde que não fujamos da dor de crescermos, não nos trancando naquela “caverna” em que Hopper esteve e que nos afasta de quem amamos e nos ama. Stranger Things é dessas preciosidades raras que, ao iluminar essa caverna, nos aponta a saída dela.

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