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Somos todos “gado”
| Foto: Michel Willian/Arquivo Gazeta do Povo

Algo que me constrange. Muito. Quando vejo alguém dizendo “se a esquerda e direita me xingam é porque só posso estar fazendo alguma coisa certa”. Meu Deus do céu, que vergonha! Não, infeliz, isso não significa porcaria nenhuma, você pode estar errando muito mais do que imagina, pode estar errando em tudo, inclusive. A única coisa que isso parece significar é que você está preocupado demais em parecer bonito no espelho, mais nada.

Acho, sinceramente, que nessa brigaiada política está na hora de pararmos de dar tanto valor assim para o fato de sermos de esquerda, direita, progressistas, conservadores, liberais ou seja lá qual o rebanho a que você pertença ou simpatize. Porque, sejamos honestos, quanto a isso a internet tem razão: somos todos gado! Sim, até você aí que se acha gado solto no pasto, afetando superioridade e sartreanamente achando que gado são os outros, nunca você. É gado, sim, mas muito gado, mais gado do que o gado, se duvidar!

Ah, duvida? Pois tente escapar e comprovará! Votou no Bolsonaro e não se arrependeu ainda? Gado bolsominion! "Ele não"? Gado lulalivre! “Não sou petista, mas…” ou “Votei no Bolsonaro, mas…”? Gado isentão! Não vai falar sobre o absurdo x ou y de Fulano z ou w? Gado “passador de pano”! É inútil resistir, lutar contra: somos gado, ainda que desprezemos o rebanho a que pertencemos ou nos confinaram.

O máximo que dá para fazer é ficar como no meme do John Travolta em Pulp Fiction, sabe qual? Eu fico assim toda vez que me vejo sem querer num dos rebanhos, tentando entender o que fiz para estar ali. Elogiei qualquer coisa do governo, viro bolsominion. Em outros momentos, lá estou entre os isentões por não ter dito nem sim, nem não, para sei lá o quê. Nos últimos tempos também me guardaram com os passadores de pano porque eu supostamente deveria condenar ameaças virtuais a não sei quem e, como "quem cala consente", já viu; e eu nem sabia do que estavam falando. Só nunca me lacraram com os lulalivre porque, enfim, tudo tem limite nessa vida de gado, né?

Somos todos gado! Até quem afeta superioridade e sartreanamente acha que gado são apenas os outros

Como diria o título do livro de Tchernichevski que inspirou Lênin: que fazer? Bom, você pode até tentar fazer da sua vida uma luta tanto hercúlea quanto inútil para não ser confundido com essa gentalha (aquela que está do lado oposto ao seu), mas irá para o abate mais dia, menos dia do mesmo jeito.

Quando isso acontecer, sugiro faça como Aziz Ansari em seu mais novo show de comédia stand-up, disponível na Netflix, chamado Right Now. Em 2017, Aziz saiu para jantar com uma moça, depois foram ao seu apartamento, praticaram sexo oral mútuo, daí ela quis ir embora, no dia seguinte ele mandou mensagem dizendo ter gostado do encontro e ela respondeu dizendo que não gostou nada daquilo e meses depois mandou à imprensa uma carta anônima alegando que Aziz teria tido com ela comportamento sexual inadequado.

No seu show, Aziz fala de maneira muito franca sobre como lidou com isso, o quanto isso o abateu, o quanto sofreu por ser considerado gado machista etc. A partir disso ele começou a fazer piadas com esse contexto cultural que transformou a todos em gado, intercalando com momentos bastante sérios e dramáticos, levando o espectador a parar para se analisar, conduzindo-o para “dentro” da sua (dele, Aziz) experiência interior diante do que fez e sofreu, desarmando-se, não tentando se defender, nem justificar, nem culpar, nem condenar, mas simplesmente compreender, ter compaixão de si e dos outros, e saindo dessa experiência como alguém melhor do que antes, como alguém, digamos assim, menos gado e mais humano.

Aposto que Viktor Frankl, o pai da logoterapia, adoraria esse show de Aziz. É, na prática, uma formidável experiência logoterápica, uma tentativa (bem sucedida, no meu entender) de dar sentido ao sofrimento. Por isso é comovente o agradecimento final que ele fez, do fundo do coração, à presença da plateia, pois sabia que, por ter sido marcado como gado, sua carreira poderia ter acabado por completo. O espectador sai do show um tanto quanto incerto se foi um show de comédia. Por um lado, foi divertido, mas por outro foi incômodo porque, quando nos damos conta do que está acontecendo ali, já é tarde e não há como escapar do espelho do nosso rebanho colocado na nossa frente com maestria por Aziz.

Aposto que Viktor Frankl, o pai da logoterapia, adoraria "Right Now", o novo show de Aziz Ansari

Acho até que esse show nem deveria ser chamado de comédia stand up, porque parece algo mais do que isso, indo além do riso que nos distancia um pouco da nossa miséria, mas a dignifica e, ainda mais do que isso, ouso dizer: também nos educa. Educação no sentido de Frankl: “Se não quisermos afogar-nos numa torrente de estímulos, e nem perecer numa promiscuidade completa, então devemos aprender a distinguir entre o que é essencial e o que não é, entre o que tem sentido e o que não tem, entre o que é responsável e o que não é”. O que Aziz fez em seu show foi justamente despertar nossa consciência para a necessidade dessas distinções, dando um exemplo de quem assumiu responsabilidades, distinguiu o essencial no que sofreu e por isso está dando mais sentido à sua vida. Precisamos aprender a fazer o mesmo.

Já que falei em Viktor Frankl, o que será que ele diria do fenômeno do gadismo atual? Desconfio que veria nisso nada mais do que o reflexo do vazio existencial que ele tão bem diagnosticou, que nos desorienta e acaba por nos fazer conduzir a vida de uma de duas maneiras: ou imitando o que os outros estão fazendo, que ele chama de conformismo; ou fazendo o que os outros querem que você faça, que ele chama de totalitarismo.

Em palavras do nosso internetês: tudo gado, seja do gado que se conforma ao seu rebanho, seja do gado que marca a ferro os outros rebanhos, estando ou não confortável no seu, sendo que a alternativa de tentar não ser gado apenas te torna um gado selecionado, aquele se achando muito livre, leve e solto, mas vivendo em um pasto cheio de outros gados iguais se bajulando mutuamente e achando que não formam rebanho algum. Melhor rir disso tudo e de si, como fez e faz Aziz Ansari.

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