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A punição dos orgulhosos no Purgatório, na gravura de Gustave Doré.
A punição dos orgulhosos no Purgatório, na gravura de Gustave Doré.| Foto: Wikimedia Commons

Guerra. De todos contra um vírus. De covardes contra temerários e vice-versa. Do nosso medo da doença contra nosso medo de não ter dinheiro para comprar comida na semana que vem. Da insanidade ideológica contra outra insanidade ideológica. De especialistas contra especialistas. De governadores contra presidente e vice-versa. De panelas contra hashtags. Da nossa vontade contra a vontade de Deus.

Na última coluna comentei como a pandemia atual nos arrastou para a Sexta-Feira Santa, mais especificamente ao Getsêmani, onde Jesus, profundamente angustiado, pediu ao Pai que afastasse dele o cálice da morte, mas que se fizesse a vontade dEle, não a sua. Em nenhuma outra cena dos Evangelhos vemos tão claramente a natureza humana e divina de Jesus transparecer unidas em sua pessoa, como aqui. E com isso enxergamos como a nossa vontade humana tende a fazer guerra com a divina e só vence quando se submete, como Jesus exemplificou.

Quando nos submetemos, acontece o que chamamos de conversão. O que não significa que a guerra acabou, pelo contrário. Antes, a guerra se dava no nosso terreno, nas nossas condições, digamos assim, quando nos dignávamos a encarar Deus; a partir da conversão a guerra se dá nas condições de Deus, porque agora O procuramos, O queremos, e aí nos damos conta de que é preciso tirar as “sandálias dos pés” porque o solo que pisamos é santo.

Quando nos submetemos, acontece o que chamamos de conversão. O que não significa que a guerra acabou, pelo contrário

Esse tirar as sandálias simboliza a necessidade de deixarmos o homem velho morrer para nascer um novo. Tomando a imagem cosmológica de Dante, em sua Divina Comédia, vemos que o Inferno e o Purgatório são duas montanhas invertidas interligadas. A do Inferno é invertida, ou seja, quando parece que subimos, descemos. É mais fácil “cair” do que “ascender” e ao sairmos do Inferno, ou seja, começarmos a deixar as sandálias dos pés, entramos no Ante-Purgatório, onde todos os recém-convertidos se descobrem, como Thomas Merton depois da sua conversão e batismo consequente:

“Não obstante todos os meus estudos, leituras e conversas, eu ainda me achava infinitamente pobre e desvalido para ajuizar sobre o que iria se verificar em meu íntimo. Estava na iminência de desembarcar na praia aos pés da alta montanha de sete patamares circulares dum Purgatório mais escarpado e mais árduo do que me era possível imaginar, e não tinha a mínima ciência da subida que ia realizar. Mas a coisa essencial era começar a escalada. O batismo constituía o seu começo, e o mais generoso, da parte de Deus. Pois embora eu fosse batizado condicionalmente, espero que Sua misericórdia sorveu nas águas da pia toda a culpa e toda a punição temporal dos meus 23 anos de pecado, e me permitiu principiar nova vida. Mas a minha natureza humana, a minha fraqueza e turma dos meus maus hábitos tinham ainda que ser combatidos e vencidos.”

Significa dizer que agora é preciso entrar em guerra consigo mesmo, contra a tendência a cometer pecados, sendo o primeiro deles justamente escolher a si acima de Deus, ainda que não pareça fazer isso. Não por acaso que o primeiro patamar dos sete que compõem a montanha do Purgatório é o do orgulho. Eis como Thomas se deparou com o seu: “Cometi o terrível engano de entrar para a vida cristã como se se tratasse meramente da vida natural investida com uma espécie de modo sobrenatural pela graça. Achava que tudo que tinha de continuar a fazer era continuar a viver conforme vivera até então, pensando e agindo como fizera antes, com a exceção apenas de evitar o pecado mortal. (...) Como podia amar a Deus, se tudo quanto fazia não era para Ele e sim para mim, e não confiava em Sua ajuda e só me apoiava em minha sabedoria e em meus talentos?”

E como ele vivera até ali? Como um intelectual: “Que maldição haveria sobre mim, impedindo que transformasse a crença em ação e a minha noção de Deus numa campanha concreta para possui-lO, já que sabia que Ele era o único bem verdadeiro? Não. Contentava-me em especular e argumentar. E creio que o motivo provinha de meu conhecimento ser sobremaneira um mero caso de consideração natural e intelectual. (...) Em tal caso o que ocorre não é contemplação, mas uma espécie de glutonaria intelectual e estética... Uma forma alta, refinada e até mesmo de egoísmo com virtuosismo. E se não inculcar nenhum movimento da vontade para Deus, nem amor eficaz por Ele, é estéril e morta essa meditação, e pode mesmo acidentalmente se tornar em certas circunstâncias uma espécie de pecado, ou pelo menos uma imperfeição.”

Eis o orgulho, o pecado que perverte o bem. Não à toa é comum aos recém-convertidos se convencerem que têm de escolher a vida religiosa, tornarem-se padres, monges ou freiras. Algo bom em si, por óbvio, mas quanto essa vontade não é a do eu, em vez de ser a de Deus? O quanto não é um bem sendo pervertido pelo egoísmo com virtuosismo? É claro que Thomas quis ser padre, daí começar a escolher alguma ordem para entrar, sendo a primeira escolha a dos franciscanos. Por graça de Deus tomou consciência de que era apenas ele escolhendo, ele querendo, ele desejando, era a sua vontade, não a de Deus. E, tal como costuma Deus falar aos orgulhosos, é pela dor e sofrimento que os derruba de suas pretensões para enfim prestarem atenção no que Ele quer.

Não é por acaso que o primeiro patamar dos sete que compõem a montanha do Purgatório é o do orgulho

Thomas ficou doente, com apendicite, precisando ser operado e sendo obrigado a passar vários dias no hospital, sendo cuidado e alimentado por outros. Aí caiu a ficha: “Isso de permanecer na cama e ser alimentado segundo um horário frequente, era bem mais do que luxo e conforto; tinha também um profundo sentido, ao que não percebi logo, mesmo porque não vinha ao caso. Alguns anos mais tarde compreendi quanto isso significava para a minha vida espiritual, pois já agora, afinal, era como tivesse nascido. Mas eu era ainda apenas um recém-nascido. Estava vivendo. Tinha uma vida interior, real, mas fraca e precária, e ainda era nutrido com leite espiritual. A vida da graça tornara-se, segundo me pareceu, constante, permanente. Fraco e sem resistência conforme até então me achava, todavia, já andava pelo ambulatório, o que significava liberdade e vida. Encontrara a minha liberdade espiritual. Meus olhos começavam a se abrir à luz poderosa e contínua do céu, e minha vontade estava aprendendo por fim a se sujeitar, a ser guiada por esse sutil, gentil e afável amor que é uma Vida sem limitação.”

Por consequência, desistiu dos planos de entrar para a vida religiosa naquele momento. Não porque não fosse chamado para ela, mas porque não confiava mais na sua vontade e temia não fazer a vontade de Deus. Eis aí o temor de Deus como o primeiro remédio do orgulho que, ao nos derrubar, revela nossa fraqueza e dessa fraqueza nos restaura na verdadeira força da Graça. Eis a guerra sendo vencida por Deus, eis o bom combate sendo travado por Thomas Merton. Por isso, vale aprender com a experiência dele. Se procurarmos pela vontade de Deus no que nos acontece, nenhuma doença vem por acaso, muito menos uma pandemia.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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