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Foto: Divulgação/Netflix
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Já assistiu à Roma, leitor cinéfilo? Um dos filmes com mais indicações ao Oscar que ocorre neste domingo. Produzido pela e disponível na Netflix, caso se interesse. Confesso que só o assisti por ossos do ofício, pois, se fosse me orientar pelos comentários que havia lido aqui e acolá, seria daqueles aos quais dificilmente eu daria uma chance. Mas ainda bem que dei; é digno de competir pela estatueta de melhor filme, ainda mais quando muitos dos concorrentes são bem inferiores, como Bohemian Rhapsody, baseado na deturpação de fatos reais da vida de Freddie Mercury e da banda Queen.

Compreendo quem não tenha gostado de Roma, porém. Filme em preto e branco, de ritmo bem lento, quase sem história, precisa dizer mais? É natural que dê sono em dez minutos em quem só espera do cinema histórias contadas em ritmo frenético de videoclipe, focadas quase que unicamente na trama, entretendo rapidamente e mantendo o mesmo pique até o fim. Quem consome cinema assim só poderá se irritar com Roma, cuja história é conduzida pelo enquadramento das imagens, mais que pela narrativa ou diálogos, quase inexistentes, aliás.

Calma, não vou entrar em tecnicismos que só interessam aos entendidos na arte de fazer cinema. Se falei em enquadramento é porque isso salta aos olhos de quem assiste. Quase todas as cenas foram filmadas a meia distância, com poucos zooms e raras vezes com ponto de vista óbvio. O filme “pede” para que o espectador preste atenção nisso, na posição do olhar com que se está mostrando tudo, e que ali permaneça acompanhando os personagens de longe, unicamente pelo que lhes acontece, já que pouco agem, e sem maior explicação ou narrativa das causas.

O risco dessa distância é causar no espectador uma indiferença que não demora a se tornar cansaço de uma história banal retratando o cotidiano de uma babá de família de classe média mexicana. Mas, com os enquadramentos sendo o verdadeiro protagonista, a experiência do espectador é deslocada do acompanhar a história para o contemplar da forma que a contém. E a beleza de cada cena, de cada quadro fotografado, seria puro esteticismo vazio, sem significado maior, se não formassem o conteúdo de uma forma (quadro) final a lhes dar sentido e valor.

Ou seja, há um enquadramento dos enquadramentos, o que fica claro quando atentamos para a primeira e última cenas, não por acaso as mais longas de todo o filme. Do chão da garagem em que a água da limpeza jogada por Cleo, quando parada, forma um espelho de uma pequena janela do teto a mostrar o céu por onde passa um avião, à cena final de Cleo subindo ao teto da construção para pendurar roupas até desaparecer, restando o mesmo céu por onde volta a passar um avião. É, portanto, a forma de um todo a conter as vidas e histórias de todos os personagens, da família da qual Cleo é parte não apenas como uma empregada, como babá das crianças, mas como o próprio chão que a sustenta e a conduz para o “céu”.

O olhar dos enquadramentos, portanto, é um olhar de reconhecimento da presença essencial de Cleo na vida daquela família e vice-versa, tornando-se uma verdadeira declaração de amor à família e de profunda gratidão a Cleo. Isso fica claro nas cenas finais do filme [ALERTA DE SPOILER], desde a perda do bebê de Cleo, passando pelo angustiante plano-sequência do quase afogamento das crianças, finalizando com o abraço em família, o único momento em que Cleo dá voz ao seu mundo interior. Uma cena muito comovente e completada com perfeição pelas cenas seguintes, de retorno no carro e chegada à “nova” casa, com o cotidiano voltando a se impor, revestindo o verdadeiro sentido daquelas vidas, daquela família, com a “banalidade” do dia-a-dia.

E aqui me parece estar a razão de ser do distanciamento dos enquadramentos e de o filme ser todo em preto e branco. Se por um lado isso dificulta a conexão emocional com a história, por outro permite enxergarmos para além dela, para aquilo que está abaixo, como seu chão, acima, como seu sentido, e no centro, como seu coração. É Cleo quem unifica o abaixo, o acima e o centro, uma personagem apaixonante por sua inocência, bondade e simplicidade transmitida apenas por sua postura e feições faciais, quase nunca com palavras. Uma atuação impecável da estreante Yalitza Aparício, que nunca antes trabalhou como atriz e foi escolhida a dedo pelo diretor Alfonso Cuarón.

Soube depois que Cuarón não foi “apenas” o diretor, mas o roteirista, diretor de fotografia e coeditor. Ou seja, Roma é dos poucos filmes que se pode realmente dizer ser um trabalho autoral. E assim foi por ser autobiográfico. Cuarón fez com seu filme uma homenagem a sua babá, contando a história da sua infância através desse olhar da memória de eventos claramente dolorosos, tratados não como quem procura um acerto de contas ou uma autoterapia, mas como quem visita a casa da infância e simplesmente se emociona por ter vivido tudo como viveu, os bons e os maus momentos, não como um lamento, mas uma ação de graças.

Depois dos créditos finais, com a cena ainda se mantendo enquadrada do chão para o céu, surge um mantra hindu: Shantih shantih shanti. Shantih significa uma paz conquistada depois de cessada toda desavença, guerra, sofrimento. Como mantra, está também no verso final do grandioso poema de T. S. Eliot A Terra Devastada, que me parece ser a referência para o filme. Eliot tirou seu significado da Carta aos Filipenses: “E a paz de Deus, que ultrapassa todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus” (Filipenses 4,7). No filme não há referência religiosa, mas o significado de uma paz conquistada “que ultrapassa todo entendimento” guardada na memória do coração parece ser a tradução perfeita em palavras do que Cuarón mostrou nas belas imagens que, embora em preto e branco, brilham de luz.

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