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Uma história oral da nova direita – por Lucas Mafaldo
| Foto: Hedeson Alves/Gazeta do Povo

Meses atrás fiz um esforço por aqui de rascunhar um pouco das origens da nova direita. Como participei involuntariamente de sua pré-história, sendo observador em certa medida privilegiado, e como não via ninguém parecendo interessado em contar essa história direito, tentando entender como que aquilo deu nisso, decidi ao menos relatar o que testemunhei, esperando que outros, tendo vivido mais e melhor desse processo, também fizessem o mesmo.

Com imensa alegria li nesta semana o relato de Lucas Mafaldo, doutor em Filosofia pela UFRN e pós-doutorando na Universidade de Ottawa, no Canadá, publicado em seu perfil pessoal no twitter, fazendo um registro dessa história conforme a viveu e a compreende. Para minha sorte, foi justamente o pedaço da história que não conhecia de perto, sobre o movimento liberal. Com sua permissão, trago seu relato para cá, acrescentando àquelas colunas um pouco mais dessa história e na semana que vem publico uma breve entrevista com o autor:

Uma história oral da nova direita

Embora o governo Bolsonaro esteja prestes a completar seu primeiro ano, eu ainda estou espantado com a rapidez do crescimento da nova direita. Há apenas alguns anos, a direita brasileira consistia em apenas um punhado de políticos e uma dezena de iniciativas pulverizadas. Hoje ela está no centro do debate público brasileiro.

Infelizmente, um efeito colateral desse rápido crescimento é que essas transformações ainda não puseram ser digeridas pela consciência nacional. Por isso, boa parte das disputas supostamente ideológicas da atualidade são apenas variações retóricas que misturam disputa por protagonismo pessoal e confusões conceituais.

Para ajudar a enxergar o cenário atual com um pouco mais de clareza, decidi contribuir com o esforço do Franscisco Escorsim em rastrear a história desse movimento. Eu tive o privilégio de poder testemunhar diretamente alguns dos capítulos dessa história e de ter sido próximo de alguns dos seus protagonistas. Escrevi as anotações seguintes para compartilhar algumas intuições que tive sobre esse processo – e, é claro, para incentivar os outros a contarem seus pedaços da história, para ampliarmos a nossa visão do conjunto.

Fase argumentativa (2004-2008)

Como o @FEscorsim conta na ótima série dele para a Gazeta do Povo, a coisa toda começou com um punhado de blogs interessados em cultura. A "nova direita" começa com um punhado de autores que não apenas não tinham um agenda política em comum, como muitos não tinham, aliás, agenda política alguma.

O próprio termo "direita" seria um pouco forçado. No fundo, tratava-se de um grupo de intelectuais interessados em ideias que fugiam ao consenso da época. A única coisa que os unia era que, cada um a seu modo, eram todos não-petistas. Era o bloco dos "desalinhados", isto é, dos "intelectuais não-orgânicos".

Com o tempo, no entanto, esse bloco foi progressivamente dialogando, saindo da internet, se encontrando no "mundo real" e criando uma série de iniciativas concretas. E foram também surgindo as divergências – algumas pessoais, outras ideológicas, e não raro uma mistura das duas.

Exceto nas ocasionais tretas públicas, as divergências pessoais geralmente ficavam implícitas, já que pega mal ser ambicioso demais. Fica melhor na fita dizer que você está atacando alguém por representar valores superiores ao seu adversário – em vez de simplesmente querer tomar o holofote dele. É justamente aí que começa o que chamo de "inflação ideológica". Cria-se um disfarce teórico para o que é meramente disputa de espaços e as pessoas começam a ver teoria onde não existe.

Além da "inflação ideológica", outro fator é o gosto brasileiro por discussões abstratas. Creio ser possível falar em fase germinal da nova direita, entre 2005 e 2008, quando essa combinação gerou uma espécie de furor argumentativo. Em listas de e-mails e comunidades do Orkut, multiplicavam-se os debates internos da "novíssima direita" – e forjavam-se, aliás, muitos dos formadores de opinião que atualmente estão em destaque.

Fica melhor na fita dizer que você está atacando alguém por representar valores superiores ao seu adversário – em vez de simplesmente querer tomar o holofote dele

Fase institucionalizante (2008-2014)

A partir de 2008, começou um esforço mais sério em institucionalizar as ideias que estavam em circulação na "fase argumentativa". Creio que é nessa época que a prequel termina e a "nova direita" realmente começa. Creio também que essa etapa é muito mal-compreendida: embora houvesse um enorme quebra-pau ideológico, havia também uma espécie de unidade sociológica difícil de explicar. Todo mundo parecia acreditar e defender coisas diferentes, mas todos estavam participando das mesmas discussões e indo para os mesmos eventos.

Foi nessa época, aliás, que eu me retirei como agente dessa história para me concentrar na carreira acadêmica. Antes disso, no entanto, participei – e até criei – alguns dos grandes momentos dessa fase "ecumênica". Por exemplo, em 2008, eu tive a ideia do "Liberdade na Estrada", uma série de palestras feitas nas universidades de todo o país. A ideia foi comprada pelo Ordem Livre (na época, tocados @dgrcosta, @BrunoGarschagen e @FabioOstermann, se não me falha a memória) e gerou um evento de lideranças do qual participaram figuras como  @ASachsida, @silviogrimaldo, Hélio Beltrão e o Ministro @rsallesmma.  Em suma, figuras que hoje são destacadas como lideranças de diferentes grupos da nova direita estavam participando das mesmas iniciativas.

Esse evento, aliás, tacou fogo em uma nova geração da nova direita. Pessoas que nunca tinham ouvido falar dos blogs da primeira geração estavam agora sendo expostas às ideias e argumentos que foram gestados naquele período. Além disso, o movimento mostrou que essa nova geração não estava isolada. Havia o potencial claro para novas iniciativas de alcance nacional.

Porém, o ecumenismo do início dessa fase "institucionalizante" (o período, digamos, de 2008 a 2014), já trazia em germe todas as tretas que têm ocupado a nova direita. Foi aí que comecei a perceber o que eu chamo de "inflação ideológica", isto é, colocar teoria demais onde não precisava. No fundo, a batalha entre "jacobinos" e "isentões" já tinha começado.

Um exemplo de "inflação ideológica", por exemplo, foi a popularização da distinção entre conservadores e liberais, segundo a qual os primeiros defenderiam a liberdade apenas na economia, enquanto os outros defenderiam a liberdade em todas as instâncias, incluindo tanto a economia como os costumes. Como expliquei em outras ocasiões, essa distinção não faz o menor sentido. Ela substitui os argumentos dos conservadores da nova direita por uma versão caricata, mais fácil de criticar. Essa caracterização do liberalismo consiste, na verdade, em uma elaborada "petição de princípio". Ela descreve todas as posições políticas em termos de contra ou a favor da liberdade – o que garante de saída a vitória do argumento liberal. Afinal, sendo a liberdade um valor essencialmente positivo, não faz o menor sentido alguém se posicionar contra a liberdade em si mesmo.

Essa vitória, no entanto, vem apenas de um truque retórico, o qual fica evidente quando mudamos os termos da equação. Se alguém definir, por exemplo, o socialismo como a defesa dos pobres e o capitalismo como a defesa dos ricos, ele irá vencer o restante do debate. A questão que fica sem discussão, no entanto, é se essa descrição realmente é coerente com a posição do adversário ou é uma mera caricatura dele.

Esse tipo de simplificação conceitual se tornou uma marca do "período institucionalizante" da nova direita. Cada nova organização precisava encontrar uma filosofia que justificasse sua existência diante das outras. No entanto, o movimento ainda era pequeno demais para se separar em grupos realmente independentes. Muitos dos "quadros" ainda eram jovens e suas posições ainda estavam evoluindo com muita rapidez.

Na época, era frequente o comentário nesses meios de que levaria décadas para que essas ideias conseguissem penetrar no restante da sociedade.

Estávamos redondamente enganados.

A fase política (2014 - agora)

Depois dos protestos de 2013 e da reeleição apertada de Dilma em 2014, ficou óbvio algo que Olavo de Carvalho estava avisando há anos: o povo brasileiro queria uma opção à direita.

A nova direita, no entanto, ainda não tinha  quadros preparados e agenda programática clara. Ela não tinha nem unidade ideológica nem uma conexão orgânica com a velha direita.  Dilma, porém, ofereceu uma solução temporária para esse problema: sua impopularidade ampliou enormemente a "demanda" por direitismo – mesmo que o direitismo em oferta ainda estivesse muito verde. Percebendo essa oportunidade, o fluxo de pessoas entrando na nova direita aumentou enormemente – multiplicaram-se tanto o público quanto os formadores de opinião e as iniciativas institucionais.

Houve, então, um breve interstício nas disputas ideológicas. O PT oferecia um inimigo comum, pacificando temporariamente as divergências. Mas, assim que o PT caiu, as tretas recomeçaram.

Muitas dessas divergências superficiais ressurgiram logo em seguida.

A divergência mais enganadora foi justamente a rígida divisão entre liberais e conservadores. Os termos em inglês possuem sentidos bem diferente, onde "liberal" deveria ser, na verdade, traduzido por "progressista". Mas a base do movimento liberal brasileiro não é progressista. O progressismo no sentido "anglo" não é exatamente individualista nem pró-mercado. Embora seja possível estabelecer alguma conexão entre ele e o liberalismo clássico, eles crescem em contextos culturais totalmente distintos, com objetivos políticos diferentes.

O liberalismo brasileiro cresceu sob um Estado pesado e em oposição ao discurso socialista. Além disso, o povo brasileiro nunca ligou para o discurso politicamente correto. Logo, o liberalismo nacional nasce com uma missão desburocratizante, descompromissado com as bandeiras da esquerda socialista. Os progressistas norte-americanos, ao contrário, emergem de uma sociedade com uma economia de mercado desenvolvida, com o objetivo de expandir a intervenção do Estado para as áreas sociais e culturais. Novamente: são dois movimentos com prioridades bem distintas, apenas com similaridade de nomes.

A vacuidade da distinção entre "conservadores" e "liberais" no Brasil se revela justamente no governo Bolsonaro. Na época da campanha, o Livres assumiu a bandeira "left-lib", tentando aumentar a identificação entre liberalismo e progressismo. Eles terminaram sem conseguir representatividade suficiente para controlar o partido e foram derrotados – mostrando a pouca força do progressismo no Brasil. Além disso, muitos dos quadros liberais estão agora trabalhando dentro do governo Bolsonaro – mostrando que não há incompatibilidade entre o liberalismo brasileiro e os conservadores.

Em outras palavras, embora houvesse algumas distinções ideológicas importante, podemos ver que na fase política da nova direita, o velho problema continua: continua-se exagerando as divisões ideológicas para esconder o que é mera disputa por espaço e por cargos. Parece haver mais diferença entre personalidades e estilo de comunicação do que entre programas políticos.

Algumas últimas considerações

Todos esses eventos ainda são recentes demais para que possamos compreendê-los profundamente. Porém, sinto que a qualidade do debate está diminuindo, pois estávamos vendo cada mais a emergência de termos mais concretos. Termos como "isentões", "redpilados" e "jacobinos", por exemplo, indicam características mais específicas em termos de estratégia, personalidade e pertencimento a grupos. Portanto, eles tornam mais transparentes as "tribos" por trás do debate, deixando mais claro as divergências programáticas e/ou estratégicas. Fica mais honesto, portanto, do que esconder todas essa dinâmicas por trás de rótulos ideológicos.

Embora discussões ideológicas sejam importantes, elas são abstratas demais para explicar todas as dinâmicas que ocorrem em uma sociedade sociedade. Não é, afinal, "a direita" que assume a Presidência, mas uma pessoa concreta. É perfeitamente possível que fulano e sicrano partilhem dos mesmos princípios gerais, enquanto discordam dos meios concretos de executar esses princípios.

Tenho notado que, nos últimos anos, parece haver cada vez menos interesse em criar institutos e organizações. A própria dinâmica das redes sociais incentiva a falar em nome próprio. Creio que essa é uma ótima oportunidade para diminuir o peso das abstrações ideológicas e aumentar a importância da responsabilidade pessoal em nossa cultura.

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