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"Jesus tentado no deserto", de James Tissot.
“Jesus tentado no deserto”, de James Tissot.| Foto: Reprodução/Domínio público

A relação entre arte, filosofia, educação e liberdade sempre nutriu a minha vida profissional. Tornei-me professor de Filosofia por uma razão simples: a natureza da filosofia é a própria liberdade. Ensinar filosofia é, como diz o filósofo Rémi Brague, ensinar que “a filosofia consiste em afirmar a liberdade e sustentá-la com todas as suas consequências”. Nem mais nem menos do que isso.

Mas por que professor? Porque o espaço pedagógico deve ser compreendido e vivido como espaço privilegiado da liberdade, que se expressa como espaço de pensamento e de diálogo. Se a essência da filosofia é a liberdade, a sala de aula estrutura o espaço da reflexão. A filosofia se coloca diante do incrível espetáculo do mundo. Seu horizonte de reflexão é a totalidade. Simplificando: tudo pode ser objeto de reflexão filosófica.

Em termos sociais, de relações institucionalizadas, a sala de aula se tornou o lugar privilegiado para reflexões dessa natureza e exigência. Respondendo, então: tornei-me professor não para revolucionar o mundo, mas para pensá-lo livremente. Não como exercício solitário, mas no “confronto” vivo com pessoas reais.

Tornei-me professor não para revolucionar o mundo, mas para pensá-lo livremente

No entanto, eu sempre trouxe comigo o ideal de dois modelos de educadores: Sócrates e Cristo. Há uma lógica nessa relação: ser herdeiro de duas tradições espirituais. Habitar Atenas e Jerusalém. A cidade dos homens e a cidade de Deus. Ou, pelo menos, o que melhor expressa a virtude dos homens e o que melhor expressa a virtude de Deus. Um vínculo essencial entre Justiça e Caridade; Razão e Fé.

Em Sócrates, o domínio da liberdade é político, pois é agir no espaço da polis enquanto experiência dialógica. Não há filosofia que não seja a de uma comunidade moral de pessoas dispostas a dialogar. E no espaço político da democracia, a liberdade se configura como discurso, um confronto entre opinião de cada um e a busca da verdade universal.

A partir da figura de Sócrates, o discurso se consolida como modo de vida filosófica e pedagógica: uma vida que não é autoexaminada não é digna de ser vivida. Como demonstra Jaeger, em sua monumental Paideia, “A filosofia que Sócrates professa não é um simples processo teórico de pensamento: é ao mesmo tempo uma exortação e uma educação”. Ora, a virtude é um valor espiritual, mas que se constrói justamente no processo de exame e refutação. Em Sócrates, a liberdade externa, portanto política, deve ser transcrita para o aperfeiçoamento da vida interior.

Há um giro espiritual com o modelo educador de Jesus Cristo. O agir agora se dá totalmente no espaço da vida interior para, só depois, ganhar dimensões sociais. Destaco Cristo no deserto como “domínio interior da liberdade”. Em Cristo, o agir se consolida no espaço da vontade humana, da tensão do homem consigo mesmo. Bento XVI diz que as tentações de Jesus no deserto “introduzem a questão do sentido da vida humana enquanto tal” – além, claro, da própria missão salvífica de Cristo.

Pertence à essência da tentação, sigo ainda os passos de Bento XVI, o aspecto moral. Nesse ponto, Atenas e Jerusalém se encontram. O que é melhor para nós, seres humanos? Primeiro: colocar de lado todas as ilusões. A tentação para a qual tanto Sócrates quanto Cristo nos alertam é, primeiro, a tentação da aparência de verdade.

O diabo tentou Cristo três vezes: “Se és o Filho de Deus, ordena que estar pedras se transformem em pão” – ora, pergunta Bento XVI: a primeira prova da identidade do redentor perante o mundo e para o mundo não deverá ser que Ele lhe dê o pão e que acabe com toda fome? Ideologias sociais prometem isso. Não é o marxismo que promete redimir o homem reduzindo a vida humana à mera subsistência material?

A segunda tentação é a mais difícil: O pináculo do Templo: “Se és Filho de Deus, lança-te abaixo!” – Trata-se dos desafios do cominho de Deus. O diabo se mostra um exímio conhecedor da Escrituras. Pede para Jesus saltar do alto do pináculo, pois, afinal, ele seria salvo. Mais uma vez recorro ao Santo Padre: “Mas Jesus não saltou para o abismo porque o diabo quis. Ele não tentou a Deus. Ao contrário, ousou dar o salto como ato de amor de Deus para o homem”.

A tentação para a qual tanto Sócrates quanto Cristo nos alertam é, primeiro, a tentação da aparência de verdade

A terceira e última tentação é, talvez, para o filósofo (pensem em Platão), a mais tentadora de todas: o poder. “Dar-te-ei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares.” O diabo oferece o domínio do mundo. O preço? Adorá-lo. Afinal, como escrevia Milton, não seria melhor reinar no inferno do que servir no céu?

Enfim, a partir da tradição cristã, liberdade já não tem a ver mais só com “poder” (nos limites do espaço da polis), mas com o querer. Ou seja: em Cristo, o domínio da vida interior se torna domínio da vontade.

Como professor e como professor de Filosofia, acredito que a sala de aula apresente uma boa síntese dessas duas dimensões da liberdade humana: o poder e a vontade. Ser livre na dimensão do poder é diferente de ser livre na dimensão do querer e do conseguir ser livre. A servidão voluntária é um fantasma que ronda o coração humano, seu verdadeiro problema é o abismo da angústia. Ensinar é nunca perder de vista esses duas batalhas travadas no interior da cidade dos homens e da cidade de Deus.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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