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"Uma leitura de Homero", de Lawrence Alma-Tadema.
“Uma leitura de Homero”, de Lawrence Alma-Tadema.| Foto: Google Art Project

Não sei o quanto estas habilidades são desprezadas no processo de aprendizado, porém considero o ouvir e o falar fundamentais para o amadurecimento intelectual, moral e cívico de um jovem estudante. O espaço pedagógico das minhas aulas, que é o espaço da reflexão, é constituído substancialmente pela fala e pela escuta. Só depois vêm a leitura e a escrita. Assistir a minhas aulas é ter de “falar” e “ouvir” comigo.

Tradicionalmente, somos herdeiros de uma cultura em que ler e escrever foram elevadas a capacidades de grande prestígio social – não à toa as crianças primeiro aprendem a falar, a ouvir e só depois passam a vida toda tentando aprender a ler e, por fim, a escrever. Não é para qualquer um, pelo menos ler e escrever bem.

No imaginário popular – e não me interessa saber o quanto a historiografia contemporânea considera a questão – a história humana ainda é dividida entre Pré-história e História a partir do domínio do fogo e da escrita. Dominamos a escrita a duras penas. Não só de cabana e carne cozida vive o homem. Os humanos passaram a maior parte de suas vidas na Terra falando, ouvindo, plantando, caçando, se reproduzindo e guerreando. Ler e escrever demarcaram um baita de um avanço civilizacional.

Não estou dizendo que a leitura e a escrita sejam irrelevantes. Mas exalto, sim, o fato de que escutar e falar são duas formas privilegiadas para despertar o espírito ao que realmente importa

A escrita e leitura, no entanto, são habilidades bem tardias no desenvolvimento das grandes civilizações. Primeiro para registro de banalidades cotidianas, como lista de mercadorias e, claro, dívidas. Não acredito que os primeiros registros escritos da humanidade tenham sido profundos insights metafísicos. No máximo, algumas listinha de gente que comprou fiado. Tardiamente começamos a registrar leis, cartas de amor e pedidos de vida eterna aos deuses. A propósito, um dos maiores poetas da humanidade morreu há exatos 700 anos. Falo de Dante Alighieri.

Homero, sem dúvida o maior poeta de todos os tempos, não exatamente escrevia – embora aqui exista profunda controvérsia acadêmica. Ilíada e Odisseia, antes do registro escrito, eram cantadas, literalmente. Tomei gosto pela leitura de poesia lendo Homero em voz alta, com dois amigos. O ideal seria apreciar os cantos da ira de Aquiles e da viagem de Ulisses em grego e com acompanhamento melódico adequado. Um dia eu chego lá.

Os diálogos platônicos não foram escritos para serem lidos no silêncio da solidão de uma escrivaninha. Em suas obras, Platão buscou reproduzir a dinâmica da vida filosófica, que é conversação, confronto vivo de ideias encarnadas em personagens. Ler em silêncio o Banquete é perder a oportunidade de desfrutar a boa companhia de Sócrates. Vinho, comida e o bom papo filosófico. Não faz sentido “ler” os diálogos, é preciso escutá-los.

Sócrates não deixou nada escrito simplesmente porque não confiava no registro escrito. Platão, apesar de ter cuidado dos primeiros parágrafos da República até pouco antes da morte, suspeitou da eficácia da escrita para compreensão de verdades últimas. Morreu dizendo que ainda tinha uma coisinha pra revisar. Em Fedro, um dos mais belos textos já escritos em filosofia, o poeta-filósofo fez críticas duras ao texto fixado na escrita.

Não tenho tal suspeita. Como cristão, confio em Deus mediante Sua Santa Palavra escrita. Mas vale ressaltar que Deus, antes de entregar em pedra os mandamentos, inspirou profetas. Pense em Moisés, que ouviu Deus sem a mediação da palavra escrita. Pessoalmente, me sinto mal de apenas ler – no sentido de passar os olhos em caracteres registrados no papel – a Palavra de Deus. Oração é para ser falada. Deus escuta. Rezar é falar com Deus. Cartinha a gente escreve para o Papai Noel. Sério, eu acho que nunca “li” o Pai Nosso e a Ave Maria. Ainda vivo o resquício de imemorial tradição oral.

Por isso, acredito, piamente, que o processo de aprendizado deveria valorizar mais o ouvir e o falar. Não estou dizendo que a leitura e a escrita sejam irrelevantes. Acredito no avanço tecnológico da humanidade graças ao domínio da escrita muito mais do que o domínio do fogo. Mas exalto, sim, o fato de que escutar e falar são duas formas privilegiadas para despertar o espírito ao que realmente importa.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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