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1. Não há fé madura sem a dúvida genuína. Com a fé, aprendi a duvidar. Na dúvida, encontrei a fé. Mesmo para o pior dos homens, vale a humildade do conhecimento. Não há nada de contraditório nisso. O único problema é começar acreditar demais em mim mesmo. Explico: tenho procurado viver segundo uma regra moral básica: não apagar o horizonte das incertezas. É difícil, confesso. Ultimamente até tenho sido um pouco intolerante — não sei se é a melhor palavra — com quem concorda comigo. Porém, se o instinto tribal manda o contrário, resisto. Como diz Álvaro de Campos: “não me venham com conclusões!”.

No espírito tribal, imperativo de nossos instintos mais básicos, há uma necessidade de julgar e condenar tudo numa tacada só, principalmente quando contraria o desejo de certeza, poder e glória. Minha ideia de mundo é tão boa e justa. Com certeza ficará sempre melhor sem os meus inimigos. Meus iguais devem ser tão iguais para mim. Meu senso de verdade é tão perfeito. Ruídos? Nada de ruídos, dissonâncias e opiniões contrárias. No reino do mundo, não há antagonismos; mas verdades. Só as minhas verdades, por gentileza.

Como diz o poeta Heinrich Heine: “eu sou o ser mais pacífico possível. Meus desejos são: uma modesta choupana com cobertura de palha, mas possuindo uma boa cama, boa mesa, leite e manteiga bem frescos, com flores na janela; diante da porta, algumas belas árvores. E, se Deus misericordioso quiser me deixar realmente feliz, que me conceda ver uns seis ou sete, mais ou menos, dos meus inimigos enforcados nessas árvores. Com o coração comovido, perdoarei, antes de morrerem, todas as ofensas que me fizeram em vida — pois, é claro, inimigos devem ser perdoados, não antes, porém, de estarem enforcados”.

No mundo perfeito, verdadeiro e justo, vale o imperativo da repulsa. Há respostas para tudo. Um método de antecipação de todas as perguntas e medos. Sendo assim, nenhum inimigo deve pisar no solo sagrado da minha aldeia e estragar o meu café da manhã. O mal? O que é o mal senão aquele espantalho perverso do meu inimigo perdoado depois de enforcado. O inferno sempre esteve distante de mim: são os outros. Sartre tinha razão: os outros são o inferno. A monstruosidade da perfeição significa ser o juiz e o algoz, o soberano sonhador das causas mais nobres. Ou seja: uma vida simples e uma virtude moral inabalável para chamar de nossa.

Enfim, só para registrar: fora da dúvida, a fé adoece. No mundo real, de pessoas de carne e osso, não se apagam abstrações sem efeitos colaterais. “Ó céu azul — o mesmo da minha infância — Eterna verdade vazia e perfeita!” Aqui as pessoas morrem antes mesmo que as esperanças naufraguem. Não esqueçamos: Depois de viver todas aquelas eloquentes tentações no deserto, Jesus foi crucificado e Barrabás — o pobre Barrabás — liberado. “Que fareis de Jesus, que chamam de Cristo?” — perguntou Pilatos. A multidão respondeu: “Seja crucificado!” E não é que o poder realmente emana do povo…

2. Na fé, sempre questionei o seguinte: Deus, todo poderoso e perfeito, não precisava ter criado o mundo. Ele viveria muito bem sozinho e nem sentiria a solidão, o tédio e o vazio da existência (isso para não entrar em detalhes teológicos sobre a Trindade). Se criou, fez por escolha e amor: compartilhar sua perfeição, glória e grandeza. Não precisava. O ser perfeito não necessita de “reconhecimento”, não sofre e não lamenta. Para ser mais preciso, Deus não necessita de nada. Se compartilhou sua grandeza e glória, foi por puro amor e liberdade.

Na concepção cristã de mundo, Deus resolveu participar de sua criação em plenitude. O paradoxo do infinito que se fez finito, do eterno que se fez temporal. Nesse sentido, nenhuma religião é mais humana. A força de sua verdade reside em um pressuposto extremamente simples e escandaloso: Deus, despojado de Sua sublime Majestade, habitou entre nós como homem. Detalhe: homem simples. Nada de luxuosos adornos. Não há religião cujo núcleo central de fé passa por essa experiência tão frágil e significativa.

Cristo não é um Deus com superpoderes habitando entre os humanos a fim de protegê-los de suas tolices. Não é um herói de histórias em quadrinhos disposto a salvar o mundo dos piores vilões. Nada disso. Jesus é Deus derrotado. Como disse Bento XVI: “Precisamente na situação de impotência exterior, Ele revela-Se como o verdadeiro Filho de Deus”. Deus se fez homem a fim de experimentar a condição humana em sua plenitude. Não é o Deus distante. É Deus cujo rosto está diante de nós, um rosto para os desgraçados.

Um homem que viveu tal como um homem vive: nasce, brinca, chora, come, dorme, ama, tem dúvidas, fica indignado, reza e morre. Tem mãe, pai, irmão, amigos, trabalha e morre. Morre não como um rei — covarde ou corajoso. Morre como trapo pendurado numa cruz. Morre porque o matamos. Porque nossa inveja, nosso egoísmo e nossa arrogância nos faz homem. Deus, pelo contrário, se fez homem por nós. Nós, ao contrário, o negamos — por puro egoísmo. Se Deus fez por doação e gratidão, nós fazemos por arrogância. Nós, ao contrário, o matamos — por medo, por inveja e por arrogância. Deus se fez homem e nós o matamos.

Realmente é absurdo querer tentar entender o ser perfeito — infinito em sua plenitude absoluta, majestoso e glorioso — morrer como um trapo pendurado em uma cruz, porque nossa tribo moral o matou. Não há sistema lógico capaz de sustentar isso. Não é um raciocínio matemático. Verdades científicas. Nada disso. Só com muita dúvida para entender que “Deus poderoso não fez nada para acabar com o sofrimento humano e nós o matamos”. Como pode este Ser infinitamente perfeito permitir o próprio sofrimento e o sofrimento de toda sua criatura? Ele poderia ter acabado de uma vez por todas com o sofrimento humano. Escolheu, por amor, não fazer.

Mais assustador do que isso, o próprio Deus experimentou o sofrimento e a morte. Experimentou a injustiça, o ódio, a calúnia, a covardia, a mentira. Sofreu e morreu como homem. Nós o crucificamos. Sofreu e morreu como um trapo pendurado na cruz a fim de garantir a humanidade do homem. A incompreensão diante do infinito e misericordioso amor de Deus no finito humano é o mistério salvífico do Amor de Deus feito trapo na cruz. Deus sempre busca os desgraçados. Nós o matamos.

3. O mundo sempre foi hostil a Cristo, que ensinou que o mal está enraizado em nós e não nos outros. Muitos cristãos, no ardor cego pela ordem, na tentação da certeza, tentaram superar o mundo como se eles mesmos morressem na cruz no lugar de Cristo. Se fazem de vítimas e perseguidos, de coitados e injustiçados. Se fazem de eleitos. Ou, mais modestamente, se fazem de “Cristo”. Esse é um erro fatal da fé. A cegueira da fé é a certeza. Erro que subverte e anula a tensão entre queda e graça, abandono e salvação.

Nada mais diabólico do que conceder a si mesmo o estado de vítima e graça. O cristão não é credenciado “a salvar” o mundo. Sua missão é anunciar o evangelho. Trata-se, na verdade, de entender o drama no interior da existência: promessa de vida eterna e silêncio, salvação e sofrimento, crise entre cidade de Deus e cidade dos homens e a tensão entre o Amor Dei e o Amor sui, da qual já falava Santo Agostinho.

Para intensificar ainda mais essa condição, nada pior do que a arrogância do cristão, cheio de si, cheio de gestos, cheio de pretensões e estéticas vazias. Nada como esquecer que neste mundo, Deus não reinou em um glorioso trono, não venceu seus inimigos pela força. Como desgraçado, morto por cada um de nós, reinou na Cruz. É no silêncio e na derrota de Deus, é nas incertezas da fé, é, enfim, no deserto que encontramos a esperança de vida eterna.

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