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A tirania dos especialistas – uma entrevista com Martim Vasques da Cunha
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Está semana entrevistei Martim Vasques da Cunha sobre o seu novo livro, A tirania dos especialistas: Desde a revolta das elites do PT até a revolta do subsolo de Olavo de Carvalho, lançado pela Civilização Brasileira. Martim tem doutorado em Filosofia Política pela Universidade de São Paulo e é autor dos livros Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More, pela Vide (2012); e A Poeira da Glória, pela Record (2015). A entrevista teve colaboração especial de Dionisius Amendola, que já contribuiu com uma entrevista exclusiva aqui para este espaço: Como os livros podem superar a falência das livrarias. Dionisius escreve sobre cultura e mantém um canal do YouTube voltado à crítica cultural, o Bunker do Dio.

Martim, o que diferencia a "tirania dos especialistas" de outras formas de tirania?

A “tirania dos especialistas” é a pior forma de tirania porque ela fundamenta todas as outras, em especial a política. Aqui, os especialistas são os intelectuais que preferem interpretar o mundo sempre com a intenção de modificá-lo, sem se preocuparem se suas ideias afetarão concretamente outros seres humanos. Na verdade, sem os intelectuais comprometidos direta ou indiretamente com um projeto de poder – e não com a meta de cultivar uma vida de sabedoria –, os tiranos jamais conseguiriam impor seus planos ao resto da sociedade. Infelizmente, na história do Ocidente, a busca pelo poder e a busca pela sabedoria estão intimamente relacionadas, seja por meio da cooptação de consciências desses pensadores, seja por meio do confronto permanente entre o indivíduo e o Estado.

Você inicia seu livro com uma afirmação instigante sobre o “28 de outubro de 2018” como a “morte da imaginação liberal”. Por que o conceito de “imaginação liberal” é tão significativo para a recente história do Brasil?

Porque a “imaginação liberal” dominou a sensibilidade da elite intelectual brasileira desde o Modernismo de 1922. Ao contrário do que muitos pensam, o liberalismo não é de direita ou de esquerda; ele é, na verdade, uma imaginação deformada que busca compreender a realidade por meio de modelos mentais que, ironicamente, não explicam nada. Como explico minuciosamente em meu livro anterior, A Poeira da Glória, o que aconteceu no Brasil desde 1922 é um combate ferrenho entre variações dessa “imaginação liberal”: socialismo, capitalismo, o liberalismo clássico, a socialdemocracia obscurantista e, sim, o integralismo.

"Se o intelectual se aliar aos poderosos, é apenas a prova definitiva de que ele vendeu a sua alma ao diabo"

Na sua opinião, por que os intelectuais públicos brasileiros (principalmente os liberais) não conseguiram prever o tsunami chamado Bolsonaro?

Porque Jair Bolsonaro é o primo pobre desse tipo de “imaginação liberal” – e os outros liberais, especialmente do espectro da chamada direita, estavam muito ocupados em observar os primos ricos, como o PT e o PSDB. Eles não entenderam que Bolsonaro é o símbolo de um ressentimento que estava sufocado havia muito tempo na alma brasileira e que, defendido por uma casta intelectual que sofria da mesma doença, submergiu como o chefe da nação. Os liberais ainda acreditam que seus modelos mentais organizam a política como se ela fosse uma farmácia asséptica. Na verdade, ainda não perceberam que ela é semelhante a um açougue imundo, no qual nós somos os abatidos.

Um dos aspectos mais preocupantes em relação ao governo Bolsonaro, e da ideologia que sustenta o bolsonarismo, é o senso de messianismo, ou seja, a crença de que ele está do lado certo da história, de que cumpre uma missão consagrada por Deus, e que, portanto, quem se opõe a isso se torna imediatamente inimigo mortal da nação. Você acredita que essa retórica do amigo-inimigo pode se tornar ação efetiva daquele que detém o poder do Estado?

Já é uma ação efetiva do Estado. Basta ver o que os militantes do governo fazem nas redes sociais, com suas estratégias de ofensas e falsas narrativas, tudo obviamente orquestrado de maneira descentralizada para dar a impressão de ser “espontâneo”. Em breve, essa ação efetiva que parece ficar restrita à internet será algo concretizado em atos que afetarão o resto da sociedade – e de forma extremamente violenta.

Durante anos vimos ser alimentado um anti-intelectualismo perigoso da parte de alguns representantes da direita. Agora isso parece estar ainda mais forte, mais radical. Nesse sentido, quem seria o público do seu livro?

O público do meu livro é o “homem comum enfim”, aquele que paga as contas ao fim do mês e fica desesperado ao ver o boleto na caixa do correio. Você não precisa ser um intelectual ou um filósofo para entender o que eu escrevo. Basta ser uma pessoa decente.

Agora que a direita ascendeu ao poder, qual o peso e a responsabilidades para o intelectual – especialmente aquele que se alinha a uma perspectiva conservadora?

O intelectual só tem uma responsabilidade: ser sempre suspeito em relação a qualquer espécie de poder, mesmo que tenha afinidades com o político que foi eleito. Se ele se aliar aos poderosos, é apenas a prova definitiva de que ele vendeu a sua alma ao diabo.

Embora muitos analistas falem em autoritarismo, você acha que é possível falar em totalitarismo para julgar a “forma mental” do bolsonarismo?

Sim, porque o bolsolavismo quer alterar a natureza humana por meio de uma mudança completa da cultura nacional. É certo que há inúmeros problemas no nosso mundo artístico e filosófico, mas já estamos com eles há anos e, portanto, estão incorporados na nossa sensibilidade. Arrancá-los pela raiz, sem uma necessária reforma gradual, apenas prejudicará ainda mais o cenário, colaborando ainda mais para o aumento desse totalitarismo cultural que, sem dúvida, também existia na época do PT. O certo a se fazer é separar o joio do trigo, ver o que funciona, ver o que não funciona e incorporar o que está certo por meio da família e da comunidade, jamais por meio das estruturas educacionais que inevitavelmente estarão ligadas ao Estado.

Qual a responsabilidade da esquerda na ascensão do bolsonarismo?

Eu diria que 50% da ascensão de Bolsonaro é culpa da própria esquerda, que se isolou nos seus castelos de areia e não entendeu que a população brasileira estava cansada da falta de responsabilidade dos políticos que não assumiam as consequências dos seus próprios atos.

Os outros 50% são da própria direita que, consumida por seu ressentimento, ficou enfeitiçada por uma narrativa na qual ela era a vítima e se viu espelhada numa revolta do subsolo, cujo líder simbólico, em termos políticos, foi Bolsonaro e seus acólitos.

"Quando alguém é chamado de 'isentão', fica evidente como estamos possuídos por uma mentalidade binária, que existe apenas no âmbito da política, e que deixa completamente de lado outras camadas da realidade"

Em um dos capítulos do seu livro chamado “A tragédia da política” – na minha opinião um dos mais importantes –, você diz, recorrendo a Benedito Nunes, que “na atual sociedade democrática, o que nos resta é “a disciplina superior do conhecimento”. Um crítico não poderia acusá-lo aqui de ser um “isentão”?

Bem, eu já sou acusado disso e de outras coisas pelos bolsolavistas, o que muito me agrada porque mostra o carinho da torcida (risos).

Quando alguém é chamado de “isentão” fica evidente como estamos possuídos por uma mentalidade binária, que existe apenas no âmbito da política, e que deixa completamente de lado outras camadas da realidade, em especial a cultural. Os bolsolavistas mal sabem, mas, ao insistirem nessa classificação, eles se tornaram os novos apóstolos daquele santo do Partido Comunista que alegavam combater – o italiano Antonio Gramsci. Na verdade, não seria um exagero afirmar que, com a derrota eleitoral do PT e a vitória política de Jair Bolsonaro, o verdadeiro vencedor foi ninguém menos que o autor dos Cadernos do Cárcere.

Há duas noções que sempre aparecem nos seus escritos e que, neste livro específico, não deixam de nortear o leitor que sabe ler o subtexto: "Bem comum" e "liberdade interior". Poderia falar um pouco sobre a importância deles no tipo de análise que você buscou fazer?

Este é um dos temas que abordarei no meu próximo livro, a ser lançado em 2020, para o deleite dos meus desafetos e dos meus verdadeiros leitores.

Há uma conexão evidente entre o Bem Comum da sociedade, como reflexo do Bem Supremo que guia a estrutura do real, e a liberdade interior de cada um de nós, que se revela na intimidade da consciência do indivíduo. Quando você perde a perspectiva de que a realidade é orientada rumo ao Bem Supremo, as pessoas também perdem a noção de que há a possibilidade de existir um Bem Comum na sociedade, algo evidente após a modernidade, em especial com o surgimento das obras de Maquiavel e Thomas Hobbes. E, consequentemente, a liberdade interior do ser humano fica desordenada, incapaz de controlar suas paixões, impossibilitando também o cultivo das virtudes.

A tragédia da política atual é que, como perdemos o contato com este Bem Supremo, não há mais a noção desse Bem Comum e, portanto, não sabemos mais o que fazer com a nossa liberdade interior, confundindo-a assim com a liberdade exterior, representada por sistemas de governo (como a democracia) e instituições técnicas e burocráticas. Neste cenário, só há duas soluções, a meu ver: ou você decide imitar o Cristo, e se isola de tudo e de todos numa existência próxima do monasticismo, ou decide encarar o mundo como ele é, o que implica em aceitar o inevitável apocalipse de todas as coisas.

Não há uma terceira via, em especial no domínio da política. Quem pensa que encontrou alguma espécie de solução para esse impasse que vivemos no fundo pratica a mesma “tirania dos especialistas” diagnosticada no meu livro.

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