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Sobre o efeito retórico de ser a voz do povo
| Foto: Reprodução

Persuasão retórica é uma artimanha do discurso capaz de fazer um raciocínio parecer algo que não é. Faz a gente tomar o falso como verdadeiro e dispensar o verdadeiro como falso. Na linguagem popular, trocar gato por lebre. Em debates públicos, a aparência de verdade exerce um conjunto considerável de efeitos psicológicos, pior do que droga: o fascínio de estar sempre com a razão e defender um pensamento total e acabado.

Muitas vezes incorremos em situações assim sem perceber, por pura distração ou simplesmente por não conseguir, no calor das conversas, distinguir uma coisa da outra. A medida de todas as coisas só pode ser determinada pelo meu senso de verdade e justiça. Fora que a paixão, a vaidade e o medo falam bem mais alto quando o assunto é validar convicções. Nossa democracia anda capenga por excesso de certezas. O que pode ser o anúncio de sua derrocada.

Certas crenças são como bálsamo para mentes ávidas por confirmação. Quando procuramos argumentos apenas para confirmar nossas certezas, voluntariamente nos prendemos num cativeiro mental. Quem se interessa pela verdade precisa, de qualquer forma, questionar a si mesmo. O velho Sócrates já dizia que uma vida não examinada não merece ser vivida. Não discordo. Ironia ou não, foi morto por abalar convicção alheia.

Nada parece ser mais difícil que buscar fatos ou argumentos contrários às nossas certezas. Chamarei de ideologia a esse tipo de convicção inabalável. Pessoas ingênuas se tornam presas fáceis de sistemas ideológicos não por serem ignorantes, mas porque é mais fácil mesmo se agarrar a certezas que moldam a realidade segundo nossas convicções e não testar as nossas convicções à luz da realidade. Se para filósofos é muito difícil definir a realidade, para ideólogos não é. Fujo de quem fala em nome de “boas ideias” como vampiro foge de água benta.

Segundo a filósofa Hannah Arendt, ideologia é um pensamento total que dá conta de explicar tudo previamente. Tim-tim por tim-tim, sem deixar nada em vão. O termo ideologia significa a lógica de uma ideia cujo fundamento ético é o de ter sempre razão e ser contra tudo o que não cabe nessa “lógica”. O atual termo “bolha” substituiu “ideologia”. Contudo, refere-se à mesmíssima coisa: estar preso a uma rede de convicções e ser do contra: contra os outros, contra a história, contra a realidade.

Diz Hannah Arendt: “As ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa, e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo está compreendido nesse coerente processo de dedução lógica. O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung [visão de mundo] não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa”.

Se recorremos ao jogo sujo da linguagem para construir um argumento com boa aparência a fim de enganar o interlocutor, não somos ingênuos, mas pilantras. Não há mais sentido em apelar para nada quando a mente se perdeu na coerência de uma boa ideia. O ideólogo é o cínico. Ou, como diz Hannah Arendt, trata-se de uma mistura de credulidade e cinismo.

Em Estados de Violência, Frédéric Gros faz uma boa análise da relação entre ideologia e filosofia. “Aquele que diz ‘eu sempre tenho razão’ faz a guerra, porque forçará o real a assemelhar-se a seu discurso. A guerra tornou-se total por ser sustentada por um sistema de certezas.” No ambiente público do conflito ideológico, todo pensamento se pretende total, por isso se alimenta do confronto.

Para Gros, “a filosofia, como pensamento dando-se por tarefa fazer tremer as certezas mais que fundamentá-las, denuncia a guerra. Se podes mostrar-me que estou errado, tu serás meu amigo, diz Sócrates a seu interlocutor em Górgias. A ideologia diz o contrário: se devo mostrar-te que tenho razão, é que tu serás meu inimigo”. Saber se orientar na filosofia é, antes de tudo, saber se orientar como oposição a toda forma de violência.

Infelizmente, há um lado sombrio na democracia, como demonstrou o sociólogo Michael Mann. Na ideia de “soberania coletiva” está a noção de autodeterminação de um “todo orgânico”: o povo. Do ponto de vista sedutor de uma ideologia, “povo” é uma ideia prévia. Uma ideia que se desenvolve a partir da ideia de todo. No entanto, ao se diferenciar do “todo”, o “outro” acaba por se tornar inimigo da “soberania popular”. O ideólogo diz “povo” como o santo diz "amém".

O cerne da retórica do “povo” é a convicção de uma vontade infalível, uma unidade voluntária e não a impossível soma dos indivíduos. Na cabeça do ideólogo, “povo” expressa a cristalina coerência lógica de uma unidade orgânica. Na Grécia Clássica, por exemplo, o termo demos se caracterizava, essencialmente, pela realidade plural dos “vários” em contraste ao pequeno número dos “excelentes”, dos “melhores” da aristocracia. Nesse contexto semântico, a democracia seria associação de homens adultos e livres. Um clube. Aqueles que detêm o poder de tomar decisões a respeito dos rumos da cidade.

Na originária noção de demos está a ideia de “coexistência de vários”, cujo reconhecimento se constrói por meio daquilo a respeito do que cada um acredita, pensa e fala livremente, sem estar comprometido espiritualmente ao ideal do todo orgânico. No sentido ideológico, “povo” foi concebido enquanto uma “unidade infalível e soberana” representante da vontade geral (vox populi, vox Dei). Portanto, fazer coincidir a fala de cada membro num todo de única fala.

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