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As ruínas do novo tempo
| Foto: Maicon Gomes/Gazeta do Povo

Dentre os pensadores da nova esquerda brasileira, aquele que certamente merece leitura minuciosa é Paulo Arantes, autor do livro O Novo Tempo do Mundo (Boitempo, 2014). Em termos de forma e conteúdo, o livro é exigente. Não se trata de um panfleto político, embora as conclusões acabem apontando para uma situação em que a única saída seja mesmo terminar os dias na agitação política das ruas. Contudo, para quem deseja saber com seriedade como a esquerda explica o mundo a partir das manifestações de 2013, as Jornadas de Junho, sem dúvida este é, na minha opinião, um dos melhores livros.

Herdeiro da tradição hegeliana, Paulo Arantes pensa a realidade política em termos de tensão dialética e todo aquele aparato conceitual acerca do fim da história; não é um marxista ortodoxo, mas tampouco um defensor hesitante das políticas identitárias. Pelo contrário, ele faz uma leitura da realidade à luz de categorias de autores como Carl Schmitt, Reinhart Koselleck, Walter Benjamin e Giorgio Agamben. O que dá uma base teórica muito consistente.

Além disso, a tese do livro é realmente desconcertante: a experiência do tempo histórico mudou, vivemos em um novo tempo do mundo. Ele o denominará de a era da emergência.

Em linhas gerais, isso significa o seguinte: se antes a relação entre nossa experiência concreta e nossas expectativas era marcada por uma diferença essencial (a tensão entre o mundo que temos e o mundo que desejamos), hoje, pela primeira vez em toda a história humana, experiência e expectativa coincidem. Noutros termos: vivemos as ruínas do futuro. Para explicar isso, Arantes utiliza das categorias de “espaço de experiência e horizonte de expectativa”, do filósofo da história e historiador alemão Reinhart Koselleck.

Segundo Koselleck, o campo de “experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados”. Não somos seres imersos no instante, mas herdeiros de uma história que revive em nós pela memória. Portanto, “na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais presentes no conhecimento”. No espaço de experiência, que é transmitido por gerações e instituições, “sempre está e é preservada uma experiência alheia”. Nosso tempo histórico começa com o reconhecimento de nossas experiências compartilhadas.

Por outro lado, temos as expectativas. Elas projetam o futuro. Dão-nos esse senso de que tendemos para além do aqui e agora, de que transmitimos nossa história. Na expectativa está contida um universo de possibilidades antecipadas. Desde sensações físicas como psicológicas, nós projetamos o futuro a partir das nossas experiências. Medos, ansiedades, desejos, certezas e incertezas, confianças e dúvidas, enfim, a expectativa é o que aponta para o futuro, num horizonte aberto de possibilidades. Em linhas gerais, esses seriam os fundamentos do tempo histórico.

O tempo histórico é vivido pela tensão histórica entre campo de experiência e horizonte de expectativa. Mas, segundo Paulo Arantes, essa tensão entre passado e futuro mudou. Experiência e expectativa coincidem, e o tempo histórico passa a ser um campo de vivência emergencial que você projeta e antecipa aqui mesmo, no presente. Ele diz que, “pela primeira vez, esse campo vai se estreitando ao ponto de se superpor, de modo que todas as expectativas, todo horizonte de expectativas, que é próprio do ponto de vista antropológico, da sociedade moderna” é “rebatido num único presente”.

Nesse novo tempo do mundo, surge a estranha sensação de que estamos indo para algum lugar sem saber direito para onde, pois estamos aqui com nossas expectativas, pautas e interesses todos urgentes. Nada é para amanhã, porque tudo é para hoje. As tradicionais ideias de “progresso” e “fim da história” não fazem mais sentido nesse campo de projeção do presente no novo tempo.  Depois da Guerra Fria, “o horizonte do mundo encolhe vertiginosamente a uma era triunfante de expectativas decrescentes”. Surge, assim, “o tempo intemporal da urgência perpétua”. O que Paulo Arantes está dizendo é que não faz mais sentido qualquer possibilidade de pensar que lá no futuro as coisas serão promissoras, pois elas devem ser aqui. Pense num cristão que depositava suas esperanças em um reino de Deus que um dia virá. Não existe mais isso:

“E é isso que faz com o que a ideia de futuro, alguns autores chamam isso de ruína do futuro, mudar completamente, desaparecer completamente de cena. Não objetivamente em suas dimensões do tempo, mas desaparece como experiência política e histórica e que é social. A ideia de você reportar para uma redenção futura e caminhar pelo desenvolvimento perpétuo e uma integração de inclusão social a perder de vista”.

Paulo Arantes supõe que toda experiência contemporânea, o que chamaríamos de pós-modernidade, vive a crise do tempo da história. Na era das revoluções e promessas utópicas, fazia pleno sentido falar de espera no futuro. No novo tempo do mundo, não. A consequência social dessa experiência é que não existe mais sentido falar em revoluções, só em insurgências. Não adiantaria nada falar em luta de classes, por exemplo, visando a sociedade comunista, já que, no fim das contas, a história acaba aqui mesmo, cujas ruínas do tempo não marcam o fim, mas o eterno começo.

Sendo assim, ele pode concluir: “o horizonte do mundo não cessa de se obscurecer; carregado de nuvens ameaçadoras e catástrofes manufaturadas, o horizonte permanece superficial e incapaz de evoluir”. Não precisamos entrar em pânico. Há uma saída. O mais difícil de aceitar não é o diagnóstico de Paulo Arantes, mas o remédio: nada “de um cenário melodramático anunciando o fim dos tempos — nem de requentar profecias regressistas —, mas de constatar que entramos em um regime de urgência”.

Segundo Martim Vasques da Cunha, que insiste na importância de se entender a mentalidade apocalíptica que domina nossa atmosfera política, “é nítido que Arantes defende com fervor este 'curso precipitado da História' porque, de maneira paralela, ele se regozija com o fato de que o globo terrestre inteiro se encontra em um 'estado de crise permanente'”.

Portanto, diante dessa crise do tempo, todo problema político, todas as manifestações, todos os atos, comícios, instituições, todo debate, enfim, toda forma de corrigir injustiças e praticar a arte do possível se limita ao presente perpétuo: neste novo tempo do mundo, “não custa insistir que cada vez mais que a conjectura tende a se perenizar. A invocação clássica do futuro, em nome da qual se legitimou a iniciativa política nos tempos modernos, não só perdeu sua força como deve ser rebatida para o presente”.

Resumindo: a ação política não visa o futuro. Logo, esqueçam as revoluções. A esperança — se é que há esperança — está no ato insurgente contra o estado atual de coisas: democracia representativa, economia de mercado, propriedade privada; enfim, a tal da “religião capitalista”. Em outras palavras, vivemos presos num constante estado de sítio em uma sociedade desumana. E, se o futuro já está entre nós, o que precisa mudar? Nenhum ato político traz o sentido de mediações institucionais. Sem história e no atual estado de urgência, só nos resta perpetuar a guerra.

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