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Milton Friedman
O economista Milton Friedman.| Foto: Wikimedia Commons

No texto desta semana, trago uma entrevista com o professor e pesquisador Dennys Garcia Xavier. Dennys é o coordenador e responsável pela coleção Breves Lições, recém-lançada da editora LVM.

Qual o principal objetivo da coleção "Breve lições", o que te inspirou organizar esses livros e como eles estão organizados?

Razzo, uma das maiores preocupações que tenho na vida acadêmica/científica deriva de uma bela advertência que o grande Platão desenha num de seus mais belos diálogos, o Fedro. Diz ele pela boca do personagem Sócrates:

Primeiro é preciso que o indivíduo saiba o verdadeiro sobre cada uma das coisas sobre as quais fala ou escreve (péri hón légei è gráfhei), e que esteja em condições de definir (horízdestai) cada coisa em si mesma, e, uma vez definida, saiba dividi-la nas suas espécies até chegar a isto que não é ulteriormente divisível, e depois de ter penetrado na natureza da alma (psyquês phýseos), encontrando novamente a espécie adequada a cada natureza, é preciso que construa e ordene os seu discurso de modo correspondente, oferecendo a uma alma complexa discursos complexos (...) e a uma alma simples, discursos simples.  Antes disso não será possível que se trate com arte, na medida em que convenha por natureza, o gênero dos discursos, nem para ensinar (didáxai), nem para persuadir (peísai), como tudo isto que dissemos e que nos fez recordar.

Ora, não vou analisar a primeira parte do trecho para não cansar o leitor. Mas repare a beleza da preocupação platônica em – ao comunicar ciência/filosofia – construir discursos em função da complexidade da alma do interlocutor. A Academia brasileira (o estudioso brasileiro, de modo geral) teima em acreditar que quanto mais truncada a comunicação, mais “douta” é a pesquisa. Por aqui, amamos a ideia de “falar difícil”, como se isso estabelecesse algum padrão de qualidade em relação à coisa dita. A filosofia, no entanto, nasceu em praça pública, na Ágora, nas conversas travadas entre homens com preocupações comuns. Aliás, este termo grego para “praça” (Ágora) virou verbo no grego Antigo: falava-se ali em “agorizar”: conversar na praça, trocar ideias, dialogar. Eis o que queremos com a coleção... “agorizar”, conversar com o leitor num clima criterioso, mas ameno.

Foi, então, com o propósito de reaproximar discussões filosóficas – muitas vezes cansativas, complexas, técnicas – do homem da cidade, sem o pedantismo retórico da Academia, que concebi a Coleção Breves Lições. Mas não só isso. Queria dar a conhecer a um público mais amplo autores que, em geral, são completamente ignorados pelos currículos escolares e universitários do país, por contrariarem uma visão ideológica monolítica estabelecida naqueles ambientes. É uma vergonha indizível que por aqui se conheça tão pouco autores como Hayek, Rand, Sowell, Hoppe, Rothbard, Mises etc. Mas isso explica de modo emblemático a miséria da nossa condição. Somos treinados desde muito cedo a abraçar ideias muito bem intencionadas, mas que nunca funcionaram em lugar algum, não funcionam ainda hoje, e que nunca funcionarão, basicamente por contrariarem elementos fundamentais da mais profunda natureza humana.

Então, nesse panorama geral, a Breves Lições vem com propósito claro: evocar o pensamento de autores Liberais/Libertários/Conservadores, com a linguagem mais clara possível, com textos escritos por jovens pesquisadores extremamente talentosos e por grandes nomes do cenário nacional, numa fusão que deseja formar novos estudiosos e celebrar os já conhecidos. Queremos que as pessoas entendam o mais elementar: a prosperidade de uma nação, sob todos os aspectos, está ancorada, antes de tudo, em vermos as coisas como são, não como gostaríamos que fossem. Precisamos dar esse passo de maturidade enquanto povo, e os pensadores contemplados pela coleção trabalham exatamente neste sentido. Investigações racionais, não ideologizadas, ancoradas na realidade dos fatos, ainda que isso, aqui e ali, contrarie nossas expectativas pessoais. O fato de termos tantos políticos mentirosos é retrato do povo que somos. Como bem diz Sowell, para quem deseja o impossível, é preciso mentir. Somos filhos das nossas escolhas, não vítimas de algumas estrutura marciana que se impôs sobre nós. Precisamos acordar do sono dogmático, das historinhas de crianças que compramos como verdades absolutas no mercado das fantasias ideológicas, nos bancos das escolas e das universidades.

Na condição de coordenador, então, distribuo temas entre os autores, com a clara orientação de explicarem os conceitos dos pensadores escolhidos da maneira mais didática possível, mas, insisto, sem perder o rigor de apreensão conceitual... tudo para que o leitor tenha balizado o caminho que leva à justa compreensão do que tem diante de si. Também escrevo diversos textos para os volumes, claro, e tem sido uma experiência fantástica trabalhar com uma equipe de altíssima qualidade neste projeto. Sem uma fecunda parceria, sem a dedicação dos colaboradores, esta coleção jamais veria a luz. E todos trabalhamos para que, ao final da leitura de um dos nosso volumes, o indivíduo descanse o livro sobre a mesa com a seguinte sensação: “tenho uma excelente visão geral desse autor, dos seus conceitos estruturantes, da sua filosofia... agora posso tranquilamente, caso deseje, pegar um de seus livros e compreendê-lo de modo adequado”.

Felizmente, o feedback é dos melhores. Já com os seus dois primeiros volumes lançados, a coleção se tornou um sucesso editorial, com ótimas críticas do público leitor e dos resenhistas especializados. Estamos com entusiasmo redobrado para continuar a caminhada.

A Editora LVM apostou alto no projeto e estamos muito felizes com o alto padrão técnico de qualidade imposto por ela. Quem já teve um dos livros em mãos sabe do que estou falando; a coleção é, além de tudo, esteticamente muito bonita e bem cuidada. Alex Catharino, editor-chefe da LVM, conduz o processo com leveza, bom humor e altas doses de exigência na produção dos livros. Tem sido uma aventura muito prazerosa, e vem muito mais por ai.

Os dois primeiros livros foram sobre Ayn Rand e Hayek, por que esses autores e o que podemos esperar dos próximos volumes?

Hayek é a representação por excelência do pensamento Liberal. Coloquei na quarta capa do livro uma frase do grande Roberto Campos que, para mim, diz bem a sua importância: “perdi muito tempo, deveria ter lido só Hayek”. Descontado o exagero afetivo da afirmação, Hayek é mesmo fundamental, basicamente porque, talvez mais do que qualquer outro autor da assim denominada “Escola Austríaca” de economia, tenha compreendido a dimensão filosófica do que fazia. Hayek percebeu que não se tratava apenas de estudar ciclos econômicos, técnicas matemáticas, micro ou macro economia. Era preciso ir além, investigar o modo de proceder do Homem, suas necessidades, seus limites, sua natureza. E ele fez isso muito bem. A ideia hayekiana de “ordem espontânea” da sociedade, suas críticas às noções ingênuas de “justiça social”, “igualdade”, e sua visão ácida sobre modelos intervencionistas de governo são, no atual estado das coisas, essenciais para uma leitura calibrada de mundo.

Rand, por outro lado, é dona de uma filosofia simplesmente arrebatadora em seus termos compositivos. Não por outro motivo é autora da segunda obra mais influente dos EUA, perdendo apenas para a Bíblia. A rede terminológica de Rand é dura, direta, estritamente racional e objetiva. Difícil lê-la e ficar indiferente. Não é raro, durante uma aula sobre essa autora, mesmo para uma audiência liberal, ouvir: “Professor Dennys, estou me sentido um comunista soviético” (risos). Suas reflexões sobre um egoísmo de tipo racional subvertem o longo percurso de aprendizado que todos nós seguimos de altruísmo, do outro como fim último de nossas ações. É chocante, mas também libertador.

Aliás, permita-me registrar aqui um ponto importante, Razzo. Todos os nosso volumes trazem no primeiro capítulo uma biografia ilustrada do autor. Consideramos que só compreendendo bem o percurso de vida de cada um deles que as suas filosofias podem ser compreendidas corretamente. No caso de Rand isso é gritante. Uma russa, que escapa dos horrores do regime coletivista soviético para viver o sonho americano. Rand não economiza nas pesadas críticas a toda forma de coletivização da vontade do indivíduo e a toda forma de vitimização diante das vicissitudes da vida. Rejeitar qualquer forma de misticismo, isto é, qualquer apelação a alguma fonte de conhecimento não-sensorial, não-racional, não-definível, sobrenatural é base da sua investigação: um compromisso com a razão, não em momentos esporádicos, em questões selecionadas, ou em emergências especiais, mas como uma filosofia de vida permanente.

Podemos ou não concordar com os termos postos pelas filosofias de Hayek e de Rand. Mas, teremos que fazê-lo num honesto debate com a arquitetônica que erigem. Um exercício digno dos melhores exemplares da nossa espécie.

Como você analisa a recepção desses autores e de autores ligados ao pensamento liberal, libertário e conservador na Academia?

Bem, a Academia brasileira abriga hoje o que há de mais atrasado, de mais retrógrado em diversos aspectos relativos aos estudos Humanísticos. Nos exórdios que assino para a coleção, digo sempre que talvez esse seja um dos mais graves entraves a ser enfrentado no âmbito da educação brasileira de nível superior: o seu compromisso ideológico com o erro, com o que evidentemente não funciona, com uma cegueira volitiva autoimposta que a impede de enxergar o fundamento de tudo o que é: a realidade, concreta, dura, muitas vezes injusta, mas... a realidade. Trata-se de uma máquina que se retroalimenta com a sua própria falência e que, por isso mesmo, atingiu o estágio no qual pensar a si mesma, se reinventar, é quase um exercício criativo de ficção.

A quantidade de sociopatas dentro das Instituições de Ensino Superior é surreal. Estamos imersos no mundo do acadêmico egghead ou “cabeça de ovo”, segundo roupagem brasileira. Falo de um indivíduo com equivocadas pretensões intelectuais, frequentemente professor ou protegido de um professor, marcado por uma indisfarçável superficialidade. Arrogante e afetado, cheio de vaidade e de desprezo pela experiência daqueles mais sensatos e mais capazes, essencialmente confuso na sua maneira de pensar, mergulhado em uma mistura de sentimentalismo e evangelismo tortuoso e violento. O quadro, realmente, não é dos mais animadores; mas, que alternativa temos, a não ser trabalhar mais e mais para que isso tudo mude? Sinto, aqui e ali, sopros pontuais de mudança. Acredito e aposto todas as minhas fichas nos jovens e nos movimentos liberais/libertários/conservadores que corajosamente criaram dentro das instituições. O clima é muito pesado para quem pensa diferente, fora da roupagem ideologicamente imposta pela establishment. Muito pesado. Teremos anos complexos no caminho para o restabelecimento de algum equilíbrio ali dentro. Aliás, restabelecimento não, porque nunca houve equilíbrio. Será uma novidade no país.

Por outro lado, se eu não acreditasse numa virada (de médio-longo prazo), sequer tocaria adiante projetos assim, como o da Breves Lições. Tenho 41 anos, ao que tudo indica não verei realizado o sonho da Universidade brasileira de excelência, livre, inovadora, produtiva, competitiva. Mas estamos plantando a semente. O mundo fora da Universidade estará liberto enquanto ainda brigaremos por migalhas dentro dela. Se não trabalharmos duro, ficarão com o espaço por séculos e, pelos resultados obtidos por eles até aqui, acho isso nada saudável.

Haverá espaço para pensadores brasileiros?

Haverá sim. Vamos agora avançar, ainda em 2019, com Sowell, Hoppe, Rothbard e Mises. Ano que vem, temos previstos Bastiat, Friedman, Burke. A nossa vantagem é que não temos que seguir uma ordem histórica ou conceitual. As obras são absolutamente autônomas e mesmo no interior de cada uma, os capítulos são independentes: você pode começar pelo fim, saltar alguns, ler a biografia separadamente, em suma.

Após percorrermos os principais nomes (os mais célebres) das escolas internacionais, vamos produzir alguns volumes dedicados exclusivamente aos autores brasileiros, muitos dos quais desconhecidos mesmo dos estudiosos da liberdade.

Por fim, não quero deixar a Coleção antes de fazer uma “contra-coleção”, apontando todos os males contidos nas filosofias dos autores estatistas, de esquerda ou de direita, coletivistas, totalitários.

Claro, Razzo, que contaremos com nomes de peso para realizar tarefa tão extenuante quanto prazerosa. Aliás, permita-me o registro, foi uma honra para nós termos um texto seu no volume que logo será lançado sobre o Sowell. Que seja o primeiro de outros tantos na Coleção.

Aproveitando, como você vê a ascensão de movimentos de direita no Brasil e o que esses movimentos poderiam aprender lendo os autores como Ayn Rand e Hayek, por exemplo?

Hoje em dia estamos “na moda”. Nossa vantagem aqui é que não somos ideólogos. Não lançamos doutrinas sobre uma realidade que nos incomoda, mascarando-a. Partimos da realidade e a pensamos nela mesma. Temos os fatos e a história a nosso favor. Contra nós, temos uma sociedade ainda muito mal formada, fortemente apegada a favores estatais e muito sensível a discursos sedutores, mas trágicos em seus efeitos. Aqui entra a importância de voltarmos os olhos aos grandes autores da liberdade: precisamos de estofo intelectual para esgrimir com os males que nos cercam. Frequentemente ofereço cursos pelo país e não rara vezes escuto a seguinte frase: “professor, gosto do que ouço falar sobre o liberalismo, sobre o conservadorismo, mas não sei muito bem argumentar sobre esses temas”. Há sim, simpatia, mas pouquíssima instrução, volume de leitura, reflexão, conhecimento.

Costumo dizer que desde a Grécia Antiga você encontrará a base de tudo o que funciona em termos sociais (e isso está fortemente presente também em Hayek, Rand e outros autores de mesmo calibre): racionalidade, pragmatismo e liberdade. Quando um desses elementos falta no cálculo, o processo tende a degringolar para formas diversas de modelos destinados ao fracasso.

Veja, por exemplo, o caso do socialismo. Como bem ensina Hayek, trata-se de um sistema fortemente “racionalista”. Diz ele literalmente, no entanto: “minha objeção aos racionalistas é que eles declaram que seus experimentos são resultado da razão, vestem-nos duma metodologia pseudocientífica e, assim, enquanto cortejam recrutas influentes e sujeitam a ataques infundados práticas tradicionais inestimáveis (resultado de eras de experimentação evolutiva de tentativa e erro), protegem os próprios ‘experimentos’ de escrutínio”. Ou seja, não falta racionalidade ao socialismo, coisa que, aliás, ele tem de sobra. Falta pragmatismo. O desejo do socialista é comandar o curso da história, determinar um processo dialético absolutamente complexo e irredutível a um cálculo ou a uma percepção totalizante do real. É a presunção fatal! Aliás, se tem algo que um liberal não é: é presunçoso. Entendemos que a razão humana é instrumento, não fim, e que precisamos dela para nos colocarmos de modo mais confortável no interior de um processo histórico que não dominamos, cheio de imprevisibilidade e de variáveis. Claro, nós, humanos, detestamos incertezas. Mas a pior forma de combater a incerteza é tentar domá-la como se isso fosse possível em termos reais. Não é. Trabalhamos tão-somente para não sofrer mais do que precisamos com ela, mas nunca ingenuamente. Isso é pragmatismo. De resto, sem a liberdade, terceiro termo da minha equação, ficamos impedidos de buscar novas soluções e alternativas para esse curso incerto da história.

Brinco sempre em minhas palestras: você pode não gostar do fato de as coisas serem o que são, mas, para isso, é preciso recorrer à psiquiatria e à psicologia, certamente não a uma filosofia que faça real sentido.

O egoísmo virtuoso da filosofia de Rand, nessa mesma linha, é um petardo contra a hipocrisia de um sistema que prefere ignorar o que somos para celebrar o que deveríamos, por alguma força metafísica, ser. Sim que posso fazer pelo outro, mas ele não é (nem deve ser) mais importante do que eu sou para mim. O princípio básico da ética Objetivista – nome da corrente filosófica criada por Rand – é que, assim como a vida é um fim em si, assim também todo ser humano vivo é um fim em si mesmo, não o meio para os fins ou o bem-estar dos outros – e, portanto, que o homem deve viver para seu próprio proveito, não se sacrificando pelos outros, nem sacrificando os outros para si. Viver para seu próprio proveito significa que o propósito moral mais alto do ser humano é a realização de sua própria felicidade. Isso impede ações efetivamente generosas para com o outro? Jamais. Este é o ponto: somos criados em lógica inversa: do auto-sacrifício, da autodestruição pelo outro, o que, para Rand, é um verdadeiro modelo de criação em série de gente hipócrita.

Veja, os socialistas/estatistas/intervencionistas estão errados quanto aos fatos. Dizer isso em termos claros, cientificamente corretos e racionalmente bem estabelecidos é parte fundamental do trabalho que fazemos com a coleção Breves Lições (claro, com todas as variações e nuances contempladas pelos diversos pensadores que dela fazem parte). Estamos a evocar, por meio de autores modernos, lições que estão entre nós há mais de 2.500 anos, que vieram de alguns dos maiores representantes dos espírito humano (Sócrates, Platão, Aristóteles) e que, sincrônica ou diacronicamente, são referências irrenunciáveis. Não há desculpas para um Homem do século XXI: sofrer por ignorância voluntária é por demais triste. E a coleção Breves Lições deseja simplesmente colaborar no processo sempre bem-vindo de ilustração de um número sempre maior de cidadãos conscientes.

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