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Cena de “Dois Papas” de Fernando Meirelles.
Cena de “Dois Papas” de Fernando Meirelles.| Foto: Divulgação/Netflix

Caríssimos leitores, antes de tudo gostaria de desejar um excelente 2020 para vocês.

Nesta semana, trago uma entrevista com Bruno Lincoln, um grande amigo que também fez “opção estética” pela literatura e pelo cinema e se afastou das falsas esperanças políticas. Bruno Lincoln é um dos idealizadores do Clube do Livro, que temos aqui em Sorocaba. Ele é formado em Direito, está terminando um mestrado em Filosofia do Direito (USP) com a dissertação sobre a peça Ricardo II de Shakespeare e tem mestrado em Economia, com pesquisa dedicada aos “protoeconomistas” da Escola de Salamanca. É cinéfilo, sabe tudo de John Ford e me apresentou os filmes do James Gray – uma dívida que considero impagável.

Nesta entrevista, conversamos sobre o filme Dois Papas, cinema e fé católica, sobre a incompatibilidade entre ser católico e liberal, sobre teologia política e, claro, Shakespeare.

Na sua opinião, qual o problema do filme Dois Papas?

O principal problema de Dois Papas é simplesmente ser um mau filme. Os primeiros cinco minutos são o suficiente para constatar que Fernando Meirelles não sabe inserir narração em off, não sabe movimentar uma câmera, não sabe enquadrar planos. O que você tem, do início, ao fim, é uma aparência de beleza, a ideia que um pequeno-burguês ou filisteu tem do que seria uma arte aristocrática. Oriundo do mundo publicitário, Meirelles é acima de tudo um vendedor de embalagens e signos, não um artista: seu trabalho é substituir o mundo por uma ideia de mundo, o filme por uma ideia de filme. Os personagens não exprimem pessoas de carne e osso, mas são antes ventríloquos de um roteirista que tenta encarnar duas correntes teológico-eclesiais opostas (conservadorismo e progressismo), desprezando a figura real de Bento XVI e Francisco. Por isso, os diálogos são canhestros, delirantes (“Deus evolui” na boca de Francisco é a pérola do ano) e caricaturais. As soluções visuais repetitivas reforçam esse desprezo pela inteligência do público: Francisco liga pessoalmente à telefonista, assobia uma música do ABBA, senta-se à frente no táxi, usa sapatos desgastados, é sempre cortês e sorridente, conhece Beatles e deseja aposentar-se. Francisco é, enfim, a encarnação da humildade, o doce Cristo na Terra. Já Bento é seu perfeito oposto: sisudo, ávido pelo poder (!), solitário, blasé e a condensação de todo o reacionarismo possível no mundo. A grande sacada “piedosa” seria a de humanizar no restante do filme essa figura vil e “filonazista” que desconhece Eleanor Rigby. Há postura mais entediante e condescendente? Só pode se tornar mesmo o filme de cabeceira dos “católicos não praticantes”.

"Um filme como Dois Papas, que faz senão reproduzir um lugar-comum midiático – Bento XVI malvado, Francisco bonzinho – é mais perigoso do que um blasfemo Porta dos Fundos"

Essa suposta polarização entre Bento XVI e Francisco faz algum sentido do ponto de vista teológico?

Faz pouco sentido ao entendermos que nem Bento XVI representa as forças “tradicionais” (seu pontificado chegou a ser criticado pelo excesso de diálogo com progressistas), nem Francisco representa a ala mais “revolucionária” como querem os jornalistas vulgares. Longe desta imagem estereotipada e pobre, as “lutas” nos bastidores da Igreja são infinitamente mais complexas e rendem todos os anos centenas de artigos e ensaios de intelectuais gabaritados. O fato é que por trás das discordâncias reais entre os papas – e não escondo minha predileção por Bento – está a Igreja: una, santa, católica e apostólica. Ela é conservadora em sua própria natureza, pois que sua missão é conservar o depósito da fé em um mundo cambiante. Ela está neste mundo, mas não é deste mundo. Como escreve Pio XII na Mistici Corporis (1943), sendo o “Corpo Místico de Cristo”, a Igreja possui uma face visível e hierárquica, sujeita aos erros e defeitos de seus membros (muitas vezes corrompidos, devemos confessar), e outra face invisível e celestial, fundada pelos lábios do próprio Redentor. Parafraseando João Paulo II, ela defenderá as mesmas verdades, ainda que volte a ter apenas 12 membros.

Quanto a Bento XVI, ele não precisa ser “humanizado” perante o público, não precisa da cínica condescendência de um Meirelles – que já confessou, aliás, não ter lido nada sobre o assunto. Além de ser um dos maiores teólogos e intelectuais vivos, sua personalidade em nada se parece com a retratada: todos que o conheceram o descrevem como um homem amável e simpático, que relutou desde o início em ser papa. Ora, se chegou até mesmo a renunciar, como pode ser aquela figura execrável que tanto maquina sua própria ascensão ao trono petrino? E esta personalidade luminosa se traduz logo em suas encíclicas, Deus caritas Est (2005), Spe Salvi (2007) e Caritas in Veritate (2009), que falam de amor, caridade, esperança e fé. Seu pensamento e obras são a tradução cristalina de um pontífice que escuta o mundo contemporâneo sem perder a assertividade e a firmeza doutrinária: Sim, sim, não, não.

É nesse sentido que um filme como Dois Papas, que faz senão reproduzir um lugar-comum midiático – Bento XVI malvado, Francisco bonzinho – é mais perigoso do que um blasfemo Porta dos Fundos, por exemplo. Este último é a manifestação ostensiva e grosseira do neopaganismo sardônico a que somos cotidianamente submetidos, enquanto o primeiro imiscui mentiras sutis em meio a verdades, expediente típico da serpente. Porta dos Fundos revolta-nos pela maneira como ataca objetivamente a honra e dignidade de Nosso Senhor e Nossa Senhora, mas não é capaz de convencer ninguém, provocando apenas ojeriza entre religiosos e aplausos entre paulistanos “descolados”. Dois Papas, ao contrário, é um perigo para a fé de milhões de católicos.

Por falar em cinema e religião, há um cinema que poderíamos chamar de “católico”? Como você vê essa relação entre cinema e fé católica (lembrando que alguns papas chegaram a escrever encíclicas sobre cinema)?

Sim, João XXIII em 1959 instituiu a Filmoteca Vaticana, em conformidade com a Carta Apostólica Boni Pastores. Antes, Pio XII, em diversos discursos, como a encíclica Miranda Prorsus, exortou os fiéis a usarem os novos meios técnicos, entre eles a arte do cinema, para o aperfeiçoamento da dignidade humana e o serviço à verdade. Contra um certo reacionarismo literato, o pontífice lembra que as técnicas, em si mesmas, são dons preciosos de Deus, e que o abuso delas é um mal moral de responsabilidade exclusivamente humano. Daí a importância de que cristãos também tomem parte na criação de obras cinematográficas.

"Bento XVI não precisa ser 'humanizado' perante o público, não precisa da cínica condescendência de um Meirelles. Sua personalidade em nada se parece com a retratada"

Se o catolicismo é a religião da encarnação do Verbo e não a religião de um livro, então o cinema é uma arte privilegiada para que, por meio de imagens sensíveis, possamos atingir as realidades transcendentes do bom, do belo e do verdadeiro. O católico, à diferença dos gnósticos, não despreza o corpo e a matéria, ao mesmo tempo em que, à diferença dos materialistas, não despreza o espírito. A meu ver, essa tensão metafísica entre corpo e alma, entre matéria e espírito, se traduz perfeitamente na dinâmica do tempo-espaço cinematográfico. O corpo, o rosto e o gesto de um ator são presenças muito materiais, enquanto a montagem oculta um vislumbre da eternidade. É isso que Robert Bresson (1901–1999), o grande cineasta francês, descobriu em seus filmes: o decalque do real velado no entrecenas aspira a algo além. Mais do que um cineasta católico, Bresson foi um católico cineasta.

Outras escolhas óbvias seriam nomes aberta ou veladamente cristãos como John Ford, Cecil B. DeMille, Andrei Tarkovski, Eric Rohmer, Carl Dreyer, Roberto Rosselini, Alfred Hitchcock, Frank Capra, Leo McCarey, Howard Hawks, Krzysztof Kieslowski, Henry King, Anthony Mann etc. Mas gosto de pensar que todo grande cineasta fez ou faz da tela uma possibilidade da analogia do ente e é, portanto, no fundo um católico. Não é de se estranhar que no século passado alguns puritanos tenham classificado o cinema como a “arte do anticristo”, para a alegria de Karl Barth.

Como e por que você se afastou do liberalismo/libertarianismo?

Participei do movimento liberal/libertário depois de me encantar pela Escola Austríaca de Economia em meados de 2010. Desde então, administrei blogs, militei pela criação do Partido Novo e do Liber, fiz parte do diretório do Livres na minha cidade, organizei e dei palestras sobre o assunto, montei clubes de leitura, ajudei na criação de um instituto e finalmente realizei minha dissertação de mestrado em Economia sobre os “protoeconomistas” da Escola de Salamanca. Como me envolvi profundamente com os ideias do libertarianismo, o “custo mental” para abandá-lo foi alto e o divórcio levou um par de anos. Sou grato à experiência que adquiri no caminho e mais ainda às amizades sinceras que construí.

Mas a verdade é que aos poucos a minha “fé” no individualismo metodológico foi chocando-se com a minha fé católica. Tentei durante algum tempo, tal qual um malabarista, unir as duas pontas, e autores não faltaram para isso: Thomas Woods Jr., Michael Novak, Alejandro Chafuen, Gabriel Zanotti e nosso brasileiro Ubiratan Jorge Iorio. Mas a primeira pista de que algo estava fora do lugar veio ao ler o artigo The Road From Libertarianism (2012), do tomista Edward Feser, um “ex-rothbardiano”. Aquilo foi um golpe tão forte que tive de deixar o artigo de molho, para retomar alguns anos mais tarde e concluir: realmente, não poderia ser católico e libertário ao mesmo tempo, chegava a hora de escolher entre Deus e Mâmon. Recomendo a todos os demais católicos que ainda se identifiquem com retóricas como as do “princípio da não agressão” e “autopropriedade” – e demais conceitos da “deontologia apriorística” antagônicos à concepção clássica de lei natural – que façam o mesmo exercício.

Não é que eu despreze a economia de mercado ou a liberdade civil, e sim que apenas deixei de absolutizar esses conceitos, de modo que essas instâncias – muito importantes, claro – sejam submetidas a uma cadeia hierárquica mais ampla: a dignidade humana, a família, a comunidade, a Igreja etc. O jusfilósofo aristotélico-tomista Michel Villey (1914–1988) foi outro autor que contribuiu para enterrar minhas esperanças em um arranjo sociopolítico radicado inteiramente no conceito de “liberdade”.

Por que não faz sentido ser liberal e ser católico?

Sua pergunta é importante, pois muitos neoconservadores desconhecem as condenações papais ao liberalismo, tão rechaçado pelo magistério formal da Igreja quanto o comunismo. Desde a condenação de Pio VI à primeira Declaração dos Direitos do Homem na França, até as grandes encíclicas de Gregório XVI (Mirari Vos), Pio IX (Quanta Cura e Syllabus), Leão XIII (Libertas Paestantissima, Rerum Novarum e Humanum Genus) e Pio XI (Mortalium Animos), o magistério da Igreja não cessou de condenar os grandes princípios norteadores do liberalismo em sentido lato. Por isso, um católico liberal é uma contradição em termos. Disse o papa Pio XI em 1871: "O ateísmo nas leis, a indiferença em matéria de religião e as máximas perniciosas chamadas católico-liberais são, sim, verdadeiramente a causa da ruína dos Estados; foram elas a perdição da França. Crede-me, o mal que vos anuncio é mais terrível que a Revolução, e ainda mais que a Comuna. Sempre condenei o catolicismo-liberal, e voltarei quarenta vezes a condená-lo, se preciso for".

O principal problema filosófico do liberalismo é a ideia de que a liberdade, outrora definida como a faculdade de escolher entre os bens (ainda que aparentes), seja tomada como um fim em si mesma, um imperativo moral absoluto a nada condicionado. Mas sabemos que a liberdade, sempre contingente e jamais um axioma, não pode ser senão o meio para atingir o Bem de cada coisa. Pensar de outro modo é substituir Deus pelo voluntarismo antropocêntrico. Por isto, a raiz teológica desta rejeição da ordem natural em prol de uma ordem prometeica exclusivamente humana é o grito do non serviam luciferiano, forma mentis que se alastra para a ética (o relativismo), a estética (o filistinismo), a política (o laicismo), a economia (o utilitarismo) e a religião (o ecumenismo), até chegar à negação ontológica de todo Bem objetivo.

"Não é que eu despreze a economia de mercado ou a liberdade civil, e sim que apenas deixei de absolutizar esses conceitos"

Mas o que a doutrina da Igreja propõe no lugar? Bem, ela nunca defendeu um programa de governo, pois isto foge ao escopo de sua missão eclesial, o que ela ressalta em sua doutrina social são os justos princípios e os critérios de juízo para toda a ação política. Se Deus verdadeiramente encarnou-se na história, então é verdade que a polis, no fim das contas, deverá ordenar-se a Cristo, que o temporal presta contas ao espiritual. E isto não tem absolutamente nada a ver com conversão forçada ou a imposição virulenta de um Estado confessional. Pensar deste modo é já pensar no interior das categorias leviatânicas da modernidade liberal. O que é necessário é um genuíno processo de reevangelização social e de profunda conversão de cada um e de toda a comunidade: disto se seguirá naturalmente o “batismo” das estruturas e instituições políticas.

Sua dissertação de mestrado em Filosofia do Direito trata de Shakespeare. Poderia falar um pouco do tema das suas pesquisas?

Minha pesquisa é sobre a questão do direito divino na peça Ricardo II (1595), a peça histórica que melhor enfrenta os problemas concretos que emergiram na Inglaterra absolutista do século 16. O retrato que Shakespeare fez de um personagem histórico – um rei incompetente deposto – remete diretamente aos monarcas da dinastia Tudor, a começar por Henrique VIII, o responsável pelo cisma anglicano em 1534. Figura referencial do absolutismo do início da Idade Moderna, o rei declarou-se a um só tempo soberano civil e chefe da Igreja nacional. Encampada por uma multidão de teóricos regalistas e pela nascente Igreja Anglicana, a tese do direito divino dos reis ganha cada vez mais contornos jurídicos ao longo do século 16: os reis possuiriam dois corpos, um natural, sujeito à corrupção e imperfeições, e um “corpo místico” incorrupto e perfeito. O soberano de sangue real, ao contrário de um homem comum, seria a imagem terrena de Deus e, em razão disto, estaria acima de qualquer jurisdição temporal ou espiritual, não podendo ser deposto nem mesmo quando violasse as leis divinas e naturais.  É sob este novo tipo de regime monárquico que Shakespeare, contrariando um meio que aceitava passivamente a teocracia, escreve a peça Ricardo II, ataque tão sutil quanto vigoroso ao direito divino de governar.

Qual a importância da teologia política para o direito?

O estudo da teologia política ajuda a desnudar as origens pretensamente neutras de qualquer sistema jurídico, o que se aplica para a divindade mais cultuada nas faculdades de Direito hoje em dia: o Estado Liberal Democrático.  Se de um lado, em Ricardo II, o monarca volta a tornar-se uma figura et imago Christi et Dei, que porta tanto o gládio espiritual quanto o temporal, por outro, o seu sucedâneo histórico, o novo Estado secular liberal – que se orgulha, na figura de seus máximos representantes iluministas, de ter dissipado as “trevas” do passado –, incorporou a doutrina formulada pela teologia católica ao fazer político do Estado-nação. Logo, o ostensivo processo de secularização, diferentemente do que se pensa, não conduziu a um mundo “livre das amarras religiosas”, mas antes à transmutação do sagrado em novas estruturas de mando. Em verdade, as mesmas formas sacralizadoras continuaram a orientar o processo político, inclusive com seus sucessivos processos de sacrifício expiatório, como bem demonstrou o antropólogo René Girard, falecido recentemente. Carl Schmitt (1888–1985), o “jurista maldito”, foi feliz ao afirmar que as categorias fundamentais do Estado moderno são conceitos teológicos secularizados – conceitos e imagens cristãs que passam pelo processo de esvaziamento de seus conteúdos originais, mas mantendo os dogmas que serão responsáveis pelo arcabouço jurídico-político da nação. O próprio monoteísmo, por exemplo, preparou a mentalidade dos cidadãos para uma obediência ao Estado weberiano monopolista da força. É assim que o Estado moderno, tomando para si inúmeros elementos da tradição católica, se consolida como grande “imanentizador” dos símbolos, ritos e liturgias religiosas. Qualquer polêmica atual sobre “laicidade” deve passar por estes pontos.

Para os nossos leitores, gostaria que você indicasse um livro de ficção e um de não ficção.

Um livro de não ficção: Eu Via Satanás cair como um Relâmpago, do antropólogo e pai da teoria mimética, René Girard. Livro que iniciou minha conversão ao cristianismo, é formidável para compreender como uma pessoa tão admirável quanto Bento XVI foi capaz de ser transformada em bode expiatório pela opinião pública.  Assim, um dos homens que mais empenhou-se no combate à chaga da pedofilia dentro do clero continua a ser retratado como um omisso ou facilitador. Ficção: nenhuma arte é tão transformadora e relevante quanto o teatro completo de Shakespeare. Sim, é clichê, mas os clichês possuem sua dose de razão.

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