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Atos de vandalismo durante protesto do Black Lives Matter em Portland, em julho de 2020.
Atos de vandalismo durante protesto do Black Lives Matter em Portland, em julho de 2020.| Foto: David Swanson/EFE/EPA

De toda a polêmica suscitada pelo texto de Antônio Risério a respeito do “racismo preto antibranco”, a que mais me interessa está longe de ser a questão racial. Repetiram-na como num mantra coletivo que “racismo reverso não existe”. Rasgaram as vestes acusando-o de racista e, os mais ousados, supremacista. Assinaram manifestos de repúdio e apoio. E a maioria deixou passar o único problema que realmente importa: o identitarismo se constitui um fundamentalismo e, por ser fundamentalismo, afirma essencialismos, inclusive o racial; por afirmar, separa e divide: “Não existe identitarismo que não traga em si algum grau e alguma espécie de fundamentalismo”.

A mim, o verdadeiro tema, portanto, do texto de Risério não é o “racismo de negros contra brancos” – isso, como ele diz, é um fato que “ninguém quer saber”. A pergunta que precisa ser respondida é a seguinte: Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo?

Tomei a liberdade de transformar o título do texto, que na matéria de jornal estampa como afirmação, em uma interrogação. A dúvida sempre me é mais atraente. E é a respeito disso que Risério está refletindo. Por que ninguém quer saber desses fatos? Ora, porque a “ordem unida ideológica manda fingir que nada aconteceu”. É um caso massificado de negacionismo e os exemplos buscam demonstrar que sim, o racismo ganha força com o identitarismo.

O identitarismo se constitui um fundamentalismo e, por ser fundamentalismo, afirma essencialismos, inclusive o racial; por afirmar, separa e divide

Não à toa, ele termina o texto apontando para as possíveis implicações desse fundamentalismo:

“Decorre de premissas fundamentais da própria perspectiva identitária, quando passamos da política da busca da igualdade para a política da afirmação da diferença. Ao afirmar uma identidade, não podemos deixar de distinguir, dividir, separar. Não existe identitarismo que não traga em si algum grau e alguma espécie de fundamentalismo. Nesse fundamentalismo, se o que conta é a afirmação de um essencialismo racial, reagindo ressentido a estigmatizações passadas, dificilmente os sinais supremacistas não serão invertidos. As implicações disso me parecem óbvias”.

Um leitor desatento ou precipitado pelo dogma de seus ressentimentos poderia resumir o texto de Risério nos seguintes termos – como fez Thiago Amparo, colunista da Folha de S.Paulo:

“Eis o argumento de Risério. Premissa 1: ‘Ninguém precisa ter poder para ser racista’ (ignora que racismo é sistema de poder). Premissa 2: ‘o racismo negro é um fato’ (ignora que negros têm 2,6 mais chances de serem assassinados e que em Salvador 100% dos mortos pela polícia são negros). Conclusão: ‘neorracismo identitário’ é ‘norma’ (ignora que exceções não configuram norma).”

Dessa falsificação, Thiago Amparo pode inferir com tranquilidade que “o maior problema do texto não é ser racista (ele é); é ser supremacista, no tom e no método, pois cria um inimigo imaginário de uma onda antibrancos”. Mas Thiago Amparo leu errado, porque não leu o texto com o mínimo de “caridade hermenêutica”, um verdadeiro princípio de compreensão interpretativa de posições divergentes. Se tivesse lido, não teria reconstruído o argumento de Risério nesses termos. Leu como fundamentalista identitário e demonstrou a tese do próprio Risério.

Risério não disse que “Ninguém precisa ter poder para ser racista”. O que ele escreveu foi literalmente duas coisas a respeito. A primeira sentença é esta: “O dogma reza que, como pretos são oprimidos, não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca. É uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo”. A segunda: “O fato é que não dá para sustentar o clichê de que não existe racismo negro porque a ‘comunidade negra’ não tem poder para exercê-lo institucionalmente” (os itálicos são meus). Ou seja: Risério está dizendo que não há necessidade de poder instituído, e não que simplesmente não precisa ter poder.

A reação ao texto de Risério demonstra justamente quão unida é essa “ordem ideológica” no quesito “fingir que nada aconteceu”, como o verdadeiro dogma do fundamentalismo identitário

A construção da premissa 2 apresentada por Thiago Amparo também está errada. A discussão de Risério não é o fato, mas por que ninguém quer saber deste fato. Há uma diferença fundamental aqui, pois Risério assume e demonstra que há fatos alimentados pelo fundamentalismo identitário, sobre os quais a imprensa e a universidade “insistem no discurso da inexistência”. Além disso, Risério foi enfático no combate a toda forma de racismo: “Não devemos fazer vistas grossas ao racismo negro, ao mesmo tempo que esquadrinhamos o racismo branco com microscópios implacáveis. O mesmo microscópio deve enquadrar todo e qualquer racismo, venha de onde vier”.

Sabe o que é mais curioso? Como a reação ao seu texto demonstra justamente quão unida é essa “ordem ideológica” no quesito “fingir que nada aconteceu”, como o verdadeiro dogma do fundamentalismo identitário.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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