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Detalhe de São Jerônimo em seu estudo, de Joos van Cleve.
Detalhe de São Jerônimo em seu estudo, de Joos van Cleve.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Adoro livros. Digo em dois sentidos que a palavra “livro” pode remeter: o primeiro sentido, o objeto físico, a presença efetiva desta forma centenária de transmitir informação. O segundo, da própria ideia que um livro traz. Explico: tenho seis edições físicas da Ilíada, portanto seis objetos físicos na biblioteca. Contudo, Ilíada não é só um objeto físico, transportável em papiro, pergaminho ou códex, mas a narrativa que inaugura a literatura universal. Quando alguém pergunta: “você já leu este livro, Ilíada?”, não está perguntando se já li o objeto físico da minha estante, mas “a cólera funesta de Aquiles”.

A presença física dos livros tem duas características essenciais. Primeira, e mais importante, a disposição física de uma biblioteca reflete a disposição do espírito humano. Não se empilha os livros. Biblioteca é, para usar uma expressão em grego de difícil tradução, um “kósmos noetós”, isto é, um mundo ordenado espiritualmente e acessível à razão. Assim, organizar livros é como organizar minha mente – e vice-versa. Segunda característica: a presença física dos livros, seja na minha mesa, nas estantes ou espalhados pela casa, ajuda-me a não esquecer deles. Biblioteca é, literalmente, memória.

E, por falar na relação entre livro e memória, nesta semana entrevistei Marcelo Azevedo, fundador e editor da recém-nascida Editora Mnēma.

Marcelo, a escolha de um nome nunca é gratuita, sobretudo quando relacionado ao universo das letras. Nesse sentido, a primeira pergunta que eu não poderia deixar de fazer diz respeito à escolha do nome e do símbolo da editora. Por que Mnēma?

Essa pergunta, de fato, é inevitável para qualquer nova editora, e no nosso caso acho que mais ainda, a escolha do nosso logo já tem uma história. Mnēma é uma palavra grega que significa “memória”, “lembrança”; no dia a dia não é muito utilizada e nem conhecida, inclusive pelo público mais culto. Esse nome leva uma carga muito representativa daquilo que pretendemos construir: Mnēma nos remete não apenas à memória enquanto habilidade de lembrar, mas também ao objeto, à coisa que guarda a lembrança do que foi vivido. Nesse sentido, o livro é visto como um dos lugares onde essa lembrança habita, e para nós é nos nossos livros que podemos preservar um pouco da memória que nos sustenta.

Quanto ao símbolo que escolhemos, a ideia é basicamente a mesma, a árvore do logo da editora é uma oliveira estilizada, planta que, como muitos sabem, é deveras longeva e com isso é capaz de “guardar” a memória do tempo que escorre ao seu redor. Além disso, é forte a relação da árvore com o livro, ao menos o físico elaborado com papel, um artefato que é construído com a matéria da árvore. Corta-se a árvore para elaborar o livro.

Preciso registrar que foram meus filhos que criaram essa dupla nome/logo que representa a editora, e estou muito feliz com o resultado. Acho que o nome e o símbolo da nossa casa livreira são belos e fortes para durar quase tanto quanto uma oliveira, se Deus quiser.

“O propósito principal para publicar os clássicos é justamente oferecer obras que são importantes para nós, que devem ser lidas porque calam fundo na nossa alma, que ajudaram a construir o que somos e o mundo que temos.”

Marcelo Azevedo

Os dois primeiros livros publicados pela Mnēma foram os seguintes: o primeiro, em parceria com a Ateliê Editorial, nada mais nada menos do que Os Evangelhos: Uma tradução – com a tradução direta do grego de Marcelo Musa Cavallari; o segundo, Europa, a via romana, do filósofo francês Rémi Brague. Do ponto de vista editorial, o que motivou essas escolhas, e o que essas obras já publicadas dizem sobre o perfil da editora?

O nosso plano para montar uma editora tem cerca de quatro anos, surgiu quando eu comecei a perceber que era possível suprir as imensas lacunas na bibliografia nacional disponível para os meus alunos. Como professor de História do Direito, tenho de lidar com questões como a formação da tradição jurídica ocidental e a construção do pensamento jurídico, temas que exigem a abordagem de uma vastíssima trajetória histórica e de um conjunto de ideias cuja origem remonta a milhares de anos. No Brasil, a despeito de algumas exceções de peso, é raro encontrar material de qualidade que trate desses temas, porém existe rica e vasta bibliografia no exterior que, com o auxílio de uma tradução competente, pode suprir essa lacuna.

Nessa época o Marcelo Cavallari já estava envolvido com a tradução dos Evangelhos direto do original grego e, por razões diversas, acabou surgindo a oportunidade de participar da coedição da obra junto com a Ateliê Editorial, e eu não podia deixar escapar uma chance como essa de participar de uma edição tão importante.

Quanto ao Rémi Brague, o sonho de editar obras dele em português é antigo, acho que desde a época em que comecei a oferecer um curso extra na faculdade sobre A Lei de Deus, história filosófica de uma aliança, livro dele editado aqui pela Loyola. Vi o interesse dos alunos e senti que seria importante tentar trazer para o Brasil outras obras desse autor.

Os dois livros espelham bem o objetivo da editora, em termos de qualidade editorial e em termos de áreas do conhecimento que nos são mais caras. Tenho certeza de que todo aquele que teve a oportunidade de se aproximar dessas obras, de tê-las em suas mãos, reconheceu de imediato a qualidade do material; e, se pode ler algumas poucas páginas, certamente foi capaz de atestar a qualidade literária e o preparo dos tradutores e autores, que é o que nós buscamos em nossos livros, voltados principalmente para o mundo das letras, da história e das ideias. Aqui preciso fazer outro registro pessoal importante, dessa vez quanto aos meus amigos que estão colaborando decisivamente para o crescimento da editora; o Marcelo Cavallari e o Jair Santos, responsáveis pelas duas obras já publicadas, e diversos outros que me orientam, criticam, sugerem, fazendo nosso trabalho avançar com mais qualidade.

De certo modo, é comum ouvirmos a pergunta: “por que devemos ler os clássicos?” Aqui, eu formularia assim: por que publicar os clássicos?

O propósito principal para publicar os clássicos é justamente oferecer obras que são importantes para nós, que devem ser lidas porque calam fundo na nossa alma, que ajudaram a construir o que somos e o mundo que temos. É bom lembrar que a expressão tem distintos significados, e no nosso caso “clássicos” deve ser entendido no sentido mais lato, abrangendo tanto a literatura da assim chamada “antiguidade clássica”, quanto as obras de períodos posteriores que marcaram o nosso imaginário.

No caso da literatura antiga, não nos interessa apenas a tradição grega e latina, mas também alguma outra literatura de origem em outras línguas indo-europeias. Além disso, pretendemos inserir nessa categoria obras de períodos históricos mais recentes. O projeto é desenvolver algumas coleções para suprir lacunas importantes observadas no mundo editorial brasileiro, especialmente aquelas dedicadas à literatura antiga, à história do direito e da política, e das ideias subjacentes a essas áreas, não só com a tradução de fontes primárias, mas também com a edição de obras de crítica e teoria modernas.

Com o advento das redes sociais e do tipo de discussão promovido nesse ambiente, publicar livros se tornou uma tarefa hercúlea. Nesse cenário cultural, quais os principais desafios e expectativas que um editor deve assumir?

Ainda sou bem inexperiente na área, estou apenas começando a sacar algumas coisas importantes no meio. Parece que um dos aspectos mais relevantes, e a meu ver bem positivo, é a questão da agenda, da pauta que nos interessa discutir, dos temas que pretendemos publicar; montar uma editora nos permite fazer escolhas que podem nos aproximar de assuntos de um modo mais profundo e profícuo. Acho ainda que o livro permite não só eleger e se debruçar sobre uma pauta por nós escolhida, mas também carrega uma possibilidade de debate muito mais produtivo e civilizado, na medida em que a narrativa “livro” tem um ritmo próprio distinto da velocidade frenética, e no mais das vezes estéril, das redes sociais. Parece que a velocidade do livro é muito mais adequada ao ser humano, ao menos é o que pude notar até agora.

“O livro carrega uma possibilidade de debate muito mais produtivo e civilizado, na medida em que a narrativa ‘livro’ tem um ritmo próprio distinto da velocidade frenética, e no mais das vezes estéril, das redes sociais.”

Marcelo Azevedo

A respeito do mercado de livros digitais, por que ainda vale a pena investir num livro físico? Em outras palavras: quais experiências um livro físico ainda pode oferecer diante da facilidade e do custo de um livro digital?

Vou dar minha opinião, a despeito de ela não valer quase nada, pois não tenho dados confiáveis para compartilhar. Acho que o livro físico se encaixa perfeitamente na anatomia humana, e talvez isso explique tamanha longevidade do artefato livro.

Outro dia assisti a um trecho de uma entrevista de um especialista europeu, apontado como grande conhecedor do mundo dos livros, que falava sobre uma mudança de ótica ocorrida nos últimos 20 anos, acerca justamente dessa questão do formato do livro, físico e digital. Acho que foi a opinião mais abalizada que já ouvi até agora, e me parece fazer muito sentido. Disse o especialista que há 20 anos a percepção era de que o livro físico cederia lugar definitivamente ao livro digital, mas que o discurso em forma de livro seria eterno. Pois bem, a percepção hoje é outra (ao menos na avaliação dele); aliás, é completamente outra, exatamente oposta, pois o livro físico continua a dominar o mercado, e o crescimento do livro digital estancou e corresponde a no máximo 10% do mercado (em alguns lugares não chega a 5%). Demais disso, a “forma narrativa” livro, que parecia eterna, vai cedendo espaço cada vez maior a outros formatos de “discursos” (a forma como se fala no Twiiter, no e-mail, no Facebook, no WhatsApp etc.). Como eu disse, ainda sou leigo no assunto e não posso cravar prognóstico nenhum, mas a aparência é essa mesmo. Ao menos na visão do especialista.

A Editora Mnēma nasceu em 2020 para levar qualidade editorial aos leitores interessados em literatura antiga, história, filosofia, direito, política e humanidades, em princípio com livros físicos, mas não fechamos as portas para alternativas digitais que possam ser sustentáveis. A minha experiência pessoal é a de que livro digital é apenas para consultas pontuais, mas isso pode mudar. Estamos atentos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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