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Imagem de um feto de 14 semanas, após aborto por morte natural.
Imagem de um feto de 14 semanas, após aborto por morte natural.| Foto: Arquivo pessoal/Facebook /Sharran Sutherland

O utilitarismo ético buscou fundamentar a moralidade nas experiências de prazer e dor. É o modelo ético do tipo consequencialista mais conhecido, e, sem dúvida, o mais influente; muito ligado, diga-se de passagem, aos liberais iluministas: os únicos representantes da razão. Já aviso aos meus estimados leitores que não me filio a esta tradição filosófica. Meu coração segue firme agostiniano: maldade e perversão brotam da desgraça.

Fato é que este tipo de ética, de fundamento naturalista, por definição, defende a tese de que o que determina o valor moral das ações humanas não é o senso de dever e a liberdade interior, mas as consequências naturais da ação. O “ético”, numa palavra, está nos resultados empiricamente constatados. Um dos pressupostos básicos é o da total irrelevância da qualidade das intenções ou disposição do caráter de um agente moral. Transcendência? Nem sonhando. Há limites que não podem ser ultrapassados.

No utilitarismo, os consagrados valores humanos – coragem, piedade, caridade e compaixão – são todos reduzidos a meras expressões de sensação de dor ou prazer

A título de exemplo, se num modelo ético concorrente do tipo kantiano só seres racionais e livres são merecedores do tratamento moral, desconsiderando animais não humanos como seres morais, na ética utilitarista animais não humanos podem ser tratados como agentes de interesses morais. No primeiro caso, seres racionais – incluindo obviamente os seres humanos e qualquer outra possível forma de vida racional – jamais perdem o valor moral; no segundo, ao contrário, há situações muito específicas, e às vezes até um tanto difusas, em que animais humanos deixam de merecer qualquer respeito desse tipo.

Pense no caso de um embrião humano: só faz sentido dizer que aborto pode ser permitido até umas 14 semanas de gestação – considerando aqui um critério recentemente adotado pelo Senado argentino – na medida em que aquele insignificante amontoadinho de células ainda não desenvolveu sistema nervoso central e, consequentemente, não sente dor. É vivo, membro da espécie humana, porém não merece qualquer respeito moral e proteção legal porque não... sente. A gestante, ao contrário, sente e sofre; portanto ocupa, na grande cadeia do ser, um lugar moralmente privilegiado.

Quem defende aborto para casos assim (até a 14.ª semana de gestação), ou seja, contornando a condição pessoal do estado embrionário, certamente tem uma visão ética fundamentada no consequencialismo utilitário. O senso de dever e responsabilidade são atacados como a mais opressora forma de levar sofrimento a uma mulher – já que interromper a gestação não “mata” alguém, apenas se refere ao exercício de autonomia diante de algo que não tem qualquer relevância.

Outro dia perguntei para um defensor do aborto o que, afinal, é um embrião e por que não mereceria atenção moral e proteção legal. A resposta foi dura e imediata: atacou-me dizendo que isso é coisa de fundamentalista religioso; e deixou subtendido que, se eu não considero essas coisas, só posso ser fanático. Por que perder tempo discutindo, filosoficamente, o que é um embrião se eu já deveria saber que, apesar de ser membro da espécie humana, ele é incapaz de sentir prazer e dor?

No utilitarismo, os consagrados valores humanos – coragem, piedade, caridade e compaixão – são todos reduzidos a meras expressões de sensação de dor ou prazer. A busca pelo “bem”, enquanto ideal regulador, deve ser esquecida pelos poetas, teólogos e metafísicos. “Bem” não é nada além de uma convenção semântica para expressar “qualquer coisa que desperte a máxima felicidade total”. E “felicidade total”? Nada além de ausência de sofrimento. Traduzindo: sensação de bem-estar, que até Max, meu cachorro, sente.

A avaliação quantitativa da “felicidade total” – ou do “bem-estar” – se reduz às análises das sensações de prazer e dor como único instrumento objetivo de que dispomos para aferir o valor das nossas ações. Max, meu cachorro, jamais praticará ação piedosa. Jamais será capaz de evocar a si mesmo e ao próximo justiça e liberdade. Amor, para ele, é um som sem sentido. Talvez, no máximo, adestrado adequadamente pra isso, desperte algum interesse por ração e abane o rabo.

Alguns utilitaristas buscaram critérios mais qualitativos como fundamento de um horizonte moral legítimo. Não obstante, o pano de fundo continua sendo materialista. Sofrimento e bem-estar são lados de uma mesma medalha; e eles podem ser mensurados, medidos e checados empiricamente. Qualquer ideia de dignidade, compaixão e amor, valores que não podem ser mensurados empiricamente, pois transcendem a nossa experiência, carece de significado moral e respaldo científico. E, fora do respaldo científico, você só pode ser fanático.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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