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Miguel Reale, em 1962.
Miguel Reale, em 1962.| Foto: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional

Ensino filosofia há uns bons anos e não me lembro de um programa que destacasse a importância da filosofia brasileira. Sim, existe filosofia do Brasil e não apenas filosofia estrangeira praticada no Brasil por professores brasileiros. Para ser mais preciso, há toda uma longa história da filosofia do Brasil que acompanha a nossa própria história brasileira. E, como toda boa história da filosofia, ela não se resume aos nossos dilemas regionais. A filosofia do Brasil, como toda boa filosofia, buscou transcender os regionalismos culturais. Essa terra tem muito mais do que futebol, feijoada, carnaval e polarização ideológica.

A produção filosófica do Brasil foi tratada no livro História da Filosofia do Brasil, de Paulo Margutti, publicado em 2013 pela Editora Loyola. Margutti tem a intenção de publicar três volumes com o objetivo de contemplar toda a história brasileira. Infelizmente, por enquanto, saiu apenas o primeiro volume, que considero uma das melhores introduções a respeito do assunto. Seu diagnóstico da situação brasileira a respeito da filosofia merece ser lido sempre com muita atenção pela honestidade como expõe o problema. Seus motivos, ele lamenta, nascem da “insatisfação com respeito ao desinteresse com o qual a filosofia brasileira é vista e tratada por uma parte significativa dos intelectuais e das instituições acadêmicas brasileiras”. Ao publicar esse livro, Margutti superou essa lacuna.

Paulo Margutti foi professor do Departamento de Filosofia da UFMG de 1978 a 2006; portanto, conhece de perto a realidade da pesquisa filosófica dos intelectuais brasileiros, e divide a filosofia praticada no Brasil em três grandes grupos distintos: os que estudam autores estrangeiros clássicos, os que estudam o pensamento filosófico brasileiro e, por fim, os que procuram a elaboração de uma filosofia de modo independente – o próprio Paulo Margutti, por exemplo, é um excelente estudioso de Wittgenstein (Iniciação ao silêncio: Análise do Tractatus de Wittgenstein), mas também um livro dedicado ao filósofo brasileiro Mario Viera de Mello (Desenvolvimento, cultura, ética - As ideias filosóficas de Mario Vieira de Mello, ambos pela Loyola).

Sim, existe filosofia do Brasil e não apenas filosofia estrangeira praticada no Brasil por professores brasileiros

Com relação a esses grupos de estudiosos, a sua análise é crítica e não meramente expositiva. Ele mostra que o primeiro grupo “está em geral ligado a instituições que possuem programas de pós-graduação em Filosofia que ocupam uma posição privilegiada na classificação baseada nos critérios de avaliação da Capes” e “se congregam nacionalmente através da Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia)”. A principal atividade filosófica desse grupo limita-se ao trabalho de “comentário exegético de pensadores estrangeiros considerados clássicos da filosofia” e eles “veem de maneira negativa o pensamento filosófico brasileiro, considerando-o inexistente ou irrelevante”.

O segundo grupo está ligado ao Instituto Brasileiro de Filosofia e à Academia Brasileira de Filosofia. Os pesquisadores não têm vínculos com a Capes ou CNPq e não se congregam com a Anpof. A característica deste grupo é oposta à do primeiro. Argumenta Margutti: eles “veem de maneira positiva o pensamento filosófico brasileiro, considerando que ele existe, é relevante e merece ser estudado. Na verdade, a filosofia no Brasil é vista por eles como uma prioridade”. Seus trabalhos são divulgados principalmente na Revista Brasileira de Filosofia e Kaleidos.

O terceiro grupo caracteriza-se pela independência intelectual de seus pesquisadores. Os membros desse terceiro grupo, diz Margutti, “procuram elaborar reflexões filosóficas pessoais, voltadas para os problemas específicos da cultura brasileira”. Eles são considerados filósofos independentes. Paulo Margutti reconhece que as ideias desses autores brasileiros independentes são ignoradas principalmente por parte do primeiro grupo. Ele também inclui nesses “filósofos independentes” a produção de literatos da envergadura de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, na medida em que “suas obras expressam as mais profundas intuições filosóficas de nossa história cultural”.

Segundo Margutti, a divisão desses grupos cria o caráter “esquizofrênico”, pois impede um aprofundamento a respeito da filosofia praticada e produzida aqui. Essa “esquizofrenia” não promove qualquer diálogo entre um grupo e outro, sobretudo os dois primeiros. Na verdade, como ele alerta, “eles se ignoram mutuamente” por causa de “diferenças ideológicas”. A polarização ideológica não foi inventada na era das redes sociais.

O primeiro grupo, ligado mais ao pensamento de “esquerda”, “inspirado inicialmente por Cruz Costa e posteriormente liderado por Oswaldo Porchat, instalou-se no Departamento de Filosofia da FFLCH da USP”. Cruz Costa “defendia a ideia de que a história não tem como objetivo restaurar o nosso passado, mas libertar-nos dele. Sua opinião política era de tendências socialistas” e foi um militante engajando na “frente esquerdista conhecida como Coligação Democrática Radical” em 1945.

Já o segundo grupo, por sua vez, está ligado à mentalidade mais para o lado da “direita” e “tirou sua inspiração de Miguel Reale, um dos mentores intelectuais da Ação Integralista Brasileira” e que “atuava na Faculdade de Direito da USP”. Miguel Reale foi o fundador da Revista Brasileira de Filosofia, cujo objetivo era o de “conferir ao país um lugar no mundo filosófico universal, sem ficar restrito à exegese do pensamento estrangeiro”, em oposição ao Departamento de Filosofia da USP. Essa polarização ideológica, reconhece Margutti, tem sido extremamente prejudicial para a história da filosofia do Brasil.

Infelizmente, grande parte dos estudos de história da filosofia brasileira é contaminada por essa polarização ideológica. Essa é a tentação a que a História da filosofia do Brasil de Paulo Margutti visa resistir. Para tanto, é necessário partir de um “programa de pesquisa mais ligado à nossa realidade”, uma “tarefa que envolverá uma reavaliação da história da filosofia brasileira [...], contribuindo desse modo para tornar mais clara a nossa autoimagem”. Essa autoavaliação do lugar em que nos encontramos coloca a obra de Margutti como um verdadeiro divisor de águas acerca dos estudos da filosofia do Brasil.

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