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Um manifestante acena uma bandeira do Black Lives Matter enquanto as pessoas se reúnem em protesto fora do Cardinal Stadium em Louisville, Kentucky, em 19 de setembro de 2020.
Um manifestante acena uma bandeira do Black Lives Matter enquanto as pessoas se reúnem em protesto fora do Cardinal Stadium em Louisville, Kentucky, em 19 de setembro de 2020.| Foto: Jon Cherry/Getty Images/AFP

A respeito de como deveríamos encarar as transformações da história, o filósofo norte-americano William James tem uma passagem muito sugestiva e de que gosto muito: “para fazer grandes mudanças não se pode querer converter uma catedral gótica em um templo dórico [...], pois as nossas maneiras fundamentais de pensar a respeito das coisas são descobertas de ancestrais incrivelmente remotas, que foram capazes de preservar-se ao longo da experiência dos tempos subsequentes”.

O que sustenta essas reflexões é o caráter antidogmático que se impõe contra um tipo limitado de racionalidade que deseja fazer tábula rasa de toda a nossa experiência histórica e social. Em linhas gerais, o que ele está defendendo, e eu concordo com ele, é que a história é um fluxo contínuo e nada do que pensamos hoje surgiu da pureza de nossas pretensões. Destruir todo passado em nome do nosso senso moral é pura tirania. A analogia usada por James faz muito sentido quando você pensa naqueles que querem zerar a história para edificar o novo redimido dos antigos defeitos.

Como se o mundo pudesse ser recriado de princípios abstratos absolutos fora da experiência histórica humana. Sem contar o processo de moralização. Ora, cancelar o passado é destruir a própria possibilidade de ter um futuro. Eu acredito na eternidade, mas não como um princípio absoluto abstrato descoberto pela força infalível da intuição racional. Trata-se de arrogância fatal condenar toda a história por uma régua que não é deste mundo. Não à toa, no anúncio salvífico cristão, Deus se encarnou como homem na história.

As políticas identitárias, fundadas no servilismo dogmático da abstração, estão afastando as pessoas de seus continentes

Ser histórico significa participar de uma comunidade moral consagrada pelo tempo: ser condicionado a um determinado lugar e a um determinado momento; ter uma pluralidade inesgotável de características que influenciarão ao longo de toda a nossa vida: biológicas, sociais, econômicas, culturais etc. Ser, portanto, herdeiro de uma memória impregnada em nós, herdada por nós e que deverá ser transmitida, por nós, às futuras gerações.

Num primeiro momento, sei que isso parece muito filosófico e distante. No entanto, refere-se a algo muito simples a respeito da condição humana: não somos uma unidade fechada em nós mesmos. Não somos feitos identidades abstratas. O poeta John Donne ficou famoso por expressar esta verdade: Nenhum homem é uma ilha isolada.

Continua o poeta: “cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

Penso que as políticas identitárias, fundadas no servilismo dogmático da abstração, estão afastando as pessoas de seus continentes.

Ora, não sou isto ou aquilo. Não sou um eu diluído em uma unidade representada por uma identidade coletiva. Em outras palavras, somos plurais vivendo em um universo de pluralidades inesgotáveis. E é isso o que se quer dizer com o fato de sermos caracterizados como “pessoas”. A realidade pessoal é um fato intrínseco de irreversível valor histórico.

Isso significa que cada um de nós se constitui, em sua totalidade, como um fluxo contínuo de experiências e relações construídas historicamente, partilhadas historicamente... como tensão entre passado e futuro. Não existimos como abstrações. Indivíduo e coletivo não têm qualquer realidade, são artefatos teóricos. Não há substancialidade alguma nos termos “indivíduo” e “coletivo” e todos os seus derivados.

Não sou isto ou aquilo. Não sou um eu diluído em uma unidade representada por uma identidade coletiva. Somos plurais vivendo em um universo de pluralidades inesgotáveis

O que há é João, José, Maria, Ana, Pedro, Miguel, Daniel. Há o fato de João ser filho de Paulo, que estudou com Gabriel, filho de Alberto, e amigo de Luiz, um velho conhecido de infância que namorou a prima de Juliana, uma menina antipática da primeira série cuja mãe sabia fazer bolo de laranja com cobertura de chocolate. A mãe aprendeu com a avó, cujo marido foi morto na Segunda Guerra e deixou uma pequena herança para a família, que torrou o dinheiro para pagar dívidas…

Enfim, o que há são histórias de pessoas de carne e osso. Na verdade, um universo inesgotável de pessoas construindo suas histórias. E é por essas pessoas que os sinos dobram.

Peço licença para encerar também com William James: “a novidade se infiltra; tinge a massa antiga; mas é também tingida pelo que absorve. Nosso passado percebe e coopera; e no novo equilíbrio em que termina cada passo dado adiante no processo de aprendizagem, acontece relativamente raro que o novo fato seja acrescentado como que cru. As mais das vezes deposita-se cozinhado, como se poderia dizer, ou guisado no molho dos fatos antigos”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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