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Ilustração anônima de 1794 mostrando a execução de vários líderes franceses, incluindo Robespierre.
Ilustração anônima de 1794 mostrando a execução de vários líderes franceses, incluindo Robespierre.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Em Cartas sobre a educação estética, o poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller, decepcionado com os rumos que o terrorismo jacobino deu à Revolução Francesa, perguntava: “Onde reside, pois, a causa de ainda sermos bárbaros?” A pergunta é significativa em vários aspectos. Porém, o mais importante, aquilo que revela o pano de fundo de todo movimento revolucionário moderno, ou seja, aquele que representa na prática política o que os philosophes iluministas conquistaram na ideia, diz respeito ao seguinte: o humanismo não conseguiu construir na terra o paraíso que a razão havia prometido; pelo contrário, criou mais e mais infernos. Seja pelo excesso ou pela carência de razão, o ser humano continua ainda um enigma para si mesmo.

A promessa de liberdade, baseada na crença da superioridade moral do humanismo com relação às religiões históricas (o cristianismo, sobretudo), tornou-se apenas um novo tipo de servilismo. O humanismo moderno não só não conseguiu erradicar o mal da face do mundo como produziu novas formas de terror. Por isso, na frase de Schiller, o advérbio “ainda” faz toda a diferença ao contextualizar os lamentos do poeta, que diante da terra prometida se depara com a terra devastada. Se Schiller tivesse perguntado “Onde reside, pois, a causa de sermos bárbaros?” – suprimindo o ainda –, a resposta teria uma natureza mais abstrata e atemporal. Seria a indagação do filósofo e não o lamento do poeta. Nesse caso, mesmo melancólico, o filósofo perguntaria, de maneira genérica e abrangente, por que a natureza humana não resiste à tentação da barbárie, da violência, da desordem e do mal.

A possibilidade de barbárie, assim como a de civilização, é inerente ao ser humano. O homem é, por natureza, um ser corruptível, mas ao mesmo tempo um ser com potenciais de virtude

Schiller, todavia, está diante de um momento histórico específico – vale lembrar que este momento está próximo de nós e, diferentemente de Schiller, vimos as consequências dele no século 20, um século de Catástrofes e Inferno (para lembrar dos títulos dos livros de Max Hastings sobre as duas grandes guerras mundiais) –, o advento da religião humanista, cujos dilemas serão explorados nas próximas páginas do livro.

A religião humanista reza o credo de que o homem se põe a si mesmo como sujeito absoluto e autocriador. Aquilo que o filósofo francês Jean-François Mattéi, em A Barbárie Interior, define com as seguintes palavras: “o caráter marcante do homem moderno, aquele que se qualifica como sujeito e que nem sempre pondera sua sujeição, é, com efeito, a interiorização e a necessidade de tudo relacionar consigo mesmo”. O humanismo como religião desvelou a liberdade radical, e com isso as diferenças entre “bem” e “mal”, “civilização e barbárie” ou “liberdade e servilismo” nada mais são do que perspectivas humanas. Sendo assim, o justo e o injusto nada mais são do que mera projeção dessa autonomia libertadora e autocentrada.

A religião humanista é, na verdade, uma religião substituta. Num ato de revolução interior (moral) e exterior (político), propõe superar e substituir, numa tacada só, as tradições grega e cristã como concepções que davam ao homem um horizonte substancial do sentido, que sustentavam a vida do homem, literalmente, numa outra ordem imaginária — um tema que será bem demarcado nas próximas páginas e é fundamental para o entendimento dos nossos dilemas contemporâneos. Na lição do velho Marx, em sua crítica da religião e a toda metafísica, “o homem é, para o homem, o ser supremo”. Se há um ponto cego nessa crença humanista, é justamente o ponto que não nos permite ver que a única fonte da barbárie sempre foi e será o homem.

A possibilidade de barbárie, assim como a de civilização, é inerente ao ser humano. O homem é, por natureza, um ser corruptível, mas ao mesmo tempo um ser com potenciais de virtude. Esse duplo aspecto – criar e destruir, ordem e desordem – reside no interior do homem. E isso não diz respeito a ideologias como liberalismo, socialismo, anarquismo, capitalismo etc., antes de dizer respeito a nós mesmos.

Na ordem certa das coisas: primeiro vem a possibilidade humana de corrupção e virtude. E a causa de ainda sermos bárbaros brota dos excessos de nossa humanidade. Afinal, foi com as melhores intenções que pessoas mergulhadas na plenitude de suas certezas criaram máquinas de destruição em massa como o Holocausto. Não sei se faremos o mesmo, embora seja sempre bom suspeitar, pois catástrofes foram realizadas em nome da razão e da pureza moral.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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