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Carlos Marighella foi terrorista, e com orgulho. Podem inventar milhões de razões para justificar seus atos, buscar traços de heroísmo, pintar uma narrativa coerente para funcionar nas telas do cinema, fazer apelos à dimensão humanista da luta de vida ou morte pela liberdade num contexto de ditadura etc., no fundo, concorde ou não, o próprio Marighella tinha orgulho da guerra de guerrilha que idealizou e lutou: “ser ‘violento’ ou um ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado na luta armada contra a vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades” — escreve na apresentação de seu Manual do Guerrilheiro Urbano, escrito em 1969. Enfim, ele tinha seus métodos para construir o reino de paz na terra.

Marighella não foi o primeiro guerrilheiro da história e não será o último. Tampouco foi o primeiro a ser enaltecido como herói em filmes. Há tantos e para todos os gostos ideológicos ou narrativos (palavra da moda). No caso do Wagner Moura, vou parafrasear o velho Oswald de Andrade: “não assisti e não gostei”. Depois que o próprio diretor do filme politizou a obra até as últimas consequências, qualquer apelo de que devemos primeiro assistir para depois julgar perdeu o sentido. Como li de uma pessoa no Twitter: “Você não precisa assistir um filme sobre o Hitler, dirigido por um fã nazista confesso com o objetivo de glorificar essa figura histórica, para saber que o filme será uma m***”. Não que Marighella deva ser comparado a Hitler, apenas que a peça de propaganda ideológica de Wagner Moura possa ser tão ruim quanto qualquer peça de propaganda ideológica.

Nesses casos, o princípio da arte pela arte não funciona. Pelo “tom” de suas entrevistas, o próprio Wagner Moura reabilita a estética do guerreiro de guerrilhas como a reconstrução da jornada do herói da luta armada que se entrega de corpo e alma pela causa revolucionária. Daquele humano, demasiadamente humano, que se precisar matar, matará em nome da causa. Isso para não falar do excesso de liberdade poética em trazer para o primeiro plano de filme biográfico a questão racial — Marighella não era bem o que se poderia chamar de “negro”. Wagner Moura ideologiza seu filme antes de lançá-lo e agora não pode simplesmente exigir que a recepção considere o formalismo estético do filme enquanto obra de arte. Ele quis colocar mais do que a arte em jogo.

Um pouquinho de história. A tradição das guerras irregulares, das guerras de guerrilhas, do partisan, da subversão, da sabotagem, ou seja, de todo um ideal de resistência contra as forças de um (suposto) imperialismo opressor não nascera com Marighella e não fora enterrada com ele. A guerra de guerrilha mais antiga que consigo me lembra agora é a Revolta dos Macabeus liderada por Judas Macabeu contra o Império Selêucida, que durante o domínio de Antíoco IV introduziu o culto de Zeus Olímpico no Templo de Jerusalém. Recomendo o excelente livro do historiador da religião Richard A. Horsley: Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina Romana (Paulus, 2010, 300 páginas).

Para lembrar de um caso mais ou menos recente idealizado no cinema e ganhador de Oscar de melhor filme (1962), tem o Lawrence da Arábia, que conta a história de T. E. Lawrence (com magnífica atuação de Peter O’Toole) durante o período da Revolta Árabe em 1916. T. E. Lawrence lutou ao lado dos árabes contra o Império Turco-Otomano. Hoje, o maior legado de Lawrence para história das guerras foi ter criado técnicas modernas de guerrilha. A guerra pelas incertezas, pela sabotagem, pelo ataque surpresa — “a surpresa era o nosso principal aliado […] vivíamos de nossa precariedade e derrotávamos os turcos com nossa incerteza”, afirma Lawrence. O filme de David Lean traz cenas memoráveis, como a do descarrilamento do trem, por exemplo.

Na América Latina, a história de guerra de guerrilha mais bem-sucedida foi a de Che Guevara — Benicio del Toro que o diga. Evidentemente, o contexto é a tentativa de instaurar o comunismo via luta armada. Acentuando-se o total desprezo da esquerda revolucionária latino-americana ao devido processo legal da democracia como coisa de burguês, ou simplesmente “legalidade burguesa”. Deve-se destruir a ordem liberal, simplesmente. Esses caras não gostavam de leis democráticas e acham a via discursiva blá-blá-blá ideológico da burguesia. No alto de seu desprezo pela via legal, Che afirma que “é necessário demonstrar claramente para o povo a impossibilidade de manter a luta por reivindicações sociais dentro do plano da luta cívica.”

Depois da Revolução Cubana em 1959, o revolucionário argentino sistematizou, teorizou e buscou universalizar sua experiência revolucionária no livro Guerra de Guerrilha, de 1961, que inspirou muitos dos movimentos revolucionários posteriores: “La vida y característica del guerrillero, fundamentalmente esbozadas, exigen una serie de condiciones físicas, mentales y morales para adaptarse a ella y poder cumplir a cabalidad la misión encomendada”. Viva a revolução, camarada! Se não tem condições físicas, mentais e morais, então cai fora!

Curiosamente, 1961 foi o ano em que Sartre escrevia o prefácio do livro Os condenados da Terra do Frantz Fanon. Não duvidem da capacidade do grande intelectual francês de justificar a violência: “Servir-nos-á bem a leitura de Fanon; essa violência irreprimível, demonstra-o plenamente, não é uma absurda tempestade nem a ressurreição de instintos selvagens, nem sequer um efeito do ressentimento: é o próprio homem que se reintegra. Essa verdade, parece-me, temo-la conhecido e esquecido: nenhuma doçura apagará os sinais da violência; só a violência os pode destruir. E o colonizado cura-se da neurose colonial expulsando o colono com as armas”.

Voltando ao nosso caso. O fato é que Marighella não foi o inventor da guerra de guerrilha e a pergunta mais importante que precisa ser feita, mesmo contrariando qualquer tentativa de enaltecê-lo como herói nacional para essa esquerda que perdeu o bonde da história, é: neste caso específico da história, a guerra de guerrilha urbana foi justa? Todo contexto da missão revolucionária não pode ser desprezado. E não basta dizer, como li num comentário sobre o filme, que, bom, ele foi “um ser humano capaz de errar, de ser truculento e de cometer assassinatos e violências variadas. Só que, acima de tudo, foi um homem fiel aos seus princípios. E, a seu modo (terrorista), um humanista…”.

Marighella tinha um objetivo claro em mente e estava disposto a fazer o que fosse necessário para alcançar essa meta (sociedade sem classes, comunismo, final feliz da história, paraíso na terra): “é necessário que todo guerrilheiro urbano tenha em mente que somente poderá sobreviver se está disposto a matar os policiais e todos aqueles dedicados à repressão, e se está verdadeiramente dedicado a expropriar a riqueza dos grandes capitalistas, dos latifundiários e dos imperialistas”. Gostaria de terminar com duas perguntas: recriar essa narrativa heroica não é  inspirar “novos revolucionários” a combaterem o que consideram “opressor”? Quem está disposto a ir até as últimas consequências?

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